No início deste ano, o ex-ministro Marco Aurélio Mello participou de uma série de entrevistas sobre os rumos da acirrada disputa eleitoral que se desenhava no Brasil. Mello passou três décadas no Supremo Tribunal Federal (STF) e foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) três vezes. Nenhuma declaração foi tão profética quanto a dele sobre o que ocorreria no país na reta final das urnas: “Receio que possamos ter tempestades”.
Mello se referia especificamente à chegada do ex-colega de toga Alexandre de Moraes à presidência do TSE. “Ele vem tendo uma atuação trepidante”, afirmou na época. Meses depois, classificou como “um nefasto acontecimento” a festa de gala e o discurso de Moraes ao ser empossado.
Em pouco tempo, Moraes importou para o TSE o autoritarismo com que conduz no Supremo os inquéritos perpétuos contra conservadores e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Batizados de milícias digitais, são acusados de atos antidemocráticos e propagadores de fake news.
A campanha de Lula já teve 74 pedidos atendidos pelos integrantes do TSE. Outros 15 estão na fila. A maioria deles trata de remoção de conteúdo nas redes sociais, mas há alguns casos gritantes que atingiram Jovem Pan, Gazeta do Povo e o site O Antagonista. Houve ainda três “direitos de resposta”, todos na Jovem Pan. No caso de Bolsonaro, sete pedidos foram atendidos. Todos esses números devem crescer na próxima semana, uma vez que as decisões liminares são diárias.
Na última ocorrência a favor de Bolsonaro, Moraes acolheu o pleito para impedir a exibição de trechos de um vídeo descontextualizado que associam Bolsonaro à pedofilia. O senador Randolfe Rodrigues (Rede), contudo, um dos coordenadores da frente lulista, orientou a militância a não acatar a ordem judicial e dobrar a aposta. A recomendação foi obedecida a ponto de Janja, mulher de Lula, publicar outro trecho sobre o caso.
A Corte é formada por Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, todos do STF, e os membros do STJ Raul Araújo Filho e Benedito Gonçalves — o último conhecido pela cena dos afáveis seis “tapinhas” no rosto quando se reencontrou com Lula na festa de posse. As demais cadeiras são para juristas e os respectivos suplentes. Os advogados de Bolsonaro aguardam nova resposta do TSE, mas o fato de Randolfe e seus aloprados debocharem da ordem judicial é grave — ou “acende uma luz no painel”, para usar a expressão de um advogado que atua na Corte.
Todos os veículos citados acima já sofreram punições pesadas e foram obrigados a retirar publicações do ar. A cartada mais forte do PT para forçar a censura foi dada no último fim de semana, antes do debate na TV Bandeirantes. A banca de advogados liderada por Cristiano Zanin, que defende Lula desde a Lava Jato, listou 47 perfis de pessoas físicas e empresas de comunicação. Foram pedidos banimentos de perfis nas redes sociais, quebras de sigilos bancários e de internet e até a censura completa.
A coligação de Lula também tentou tirar Oeste do ar. O ministro Benedito Gonçalves, contudo, negou a liminar do PT. O caso ainda será analisado pela Corte. Segundo a acusação, Oeste e alguns dos seus colaboradores integram uma rede de perfis que promovem “desordem informacional” — uma modalidade mais sofisticada de fake news, que nem o PT e o TSE conseguiram explicar.
A teia paranoica do PT lista perfis anônimos, canais de mídia conservadores, profissionais com décadas de estrada no mercado editorial e os filhos do presidente. Esse roteiro hollywoodiano foi batizado pelos autores do Q.G. petista de “ecossistema da desinformação”. Ou seja, juntos, teriam cometido um crime ainda desconhecido no Código Penal. Mas grave o bastante para o TSE riscá-los da internet até o dia 30 de outubro.
“Pessoas que, por qualquer motivo, angariaram maior relevância na rede virtual são as responsáveis por movimentar e alimentar sua base de seguidores com as informações que publicam em suas páginas”, diz a peça dos advogados. A conclusão dos autores é que, “quando o assunto são as eleições, as pessoas que comentam o assunto em suas páginas corroboram fortemente para a formação da opinião político-eleitoral de seus seguidores”.
Um entendimento possível é que os redatores da peça não conhecem o papel na sociedade atual do formador de opinião ou “influenciador digital” — uma das profissões preferidas, aliás, dos “progressistas”. Ou seja, se um dos candidatos tem mais — ou melhores — influenciadores digitais do que o outro, não há paridade de armas. Logo, a solução stalinista proposta pelo PT é eliminar os apoiadores de Bolsonaro.
Há, ainda, algumas linhas em elogio ao consórcio da velha imprensa, que tem se empenhado desde os tempos da covid para recolocar Lula no certame eleitoral. “Esses canais emulam maliciosamente o caráter noticioso de mídias jornalísticas tradicionais — essas que, por outro lado, exercem papel fundamental à democracia — para, com a aparente seriedade do fazer jornalístico, conquistar a credibilidade do eleitor desavisado.”
Não vi, mas não gostei
A produtora Brasil Paralelo foi atingida em cheio. O ministro Benedito Gonçalves proibiu a empresa de impulsionar seus conteúdos no Google, sob pena de multas altíssimas, e censurou um documentário que nem sequer foi lançado — intitulado Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?. É um raro caso de censura prévia desde a redemocratização do país. No mundo, talvez só seja aplicado hoje em países com regimes totalitários, como China, Coreia do Norte, Cuba, Venezuela e a Nicarágua de Daniel Ortega.
Chamou a atenção o fato de, na véspera do despacho que censurou a produtora, Moraes ter recebido uma comitiva petista, chefiada pela presidente da sigla, Gleisi Hoffmann (PR), e advogados da frente de esquerda Prerrogativas — conhecida por atacar a Lava Jato. Depois do encontro, Gleisi disse que não aguentava mais e que só remover conteúdos era “enxugar gelo” — ela pede que os opositores sejam proibidos de usar a internet e tenham os sigilos devassados.
Jovem Pan
Outro alvo preferencial da ofensiva petista no tribunal é a Jovem Pan. A emissora já sofreu diversas sanções, como a remoção de uma entrevista na qual a senadora Mara Gabrilli (PSDB) liga o PT ao assassinato do prefeito Celso Daniel. O caso de Santo André assim como a relação de integrantes do PT com a facção PCC são temas proibidos nesta eleição.
O episódio mais agudo contra a Jovem Pan foi uma verdadeira mordaça: os comentaristas foram proibidos de opinar e falar da vida pregressa de Lula perante a Justiça. Não podem dizer que o ex-presidente é descondenado, ex-presidiário ou coisa semelhante, em razão da — justifica o Tribunal Eleitoral — “anulação das condenações do candidato”. Além disso, a emissora foi obrigada a retirar o conteúdo de programas que fizeram essa referência e a conceder direito de resposta dentro dos programas.
“A Jovem Pan está, desde a segunda-feira 17, sob censura instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não podemos, em nossa programação — no rádio, na TV e nas plataformas digitais —, falar sobre os fatos envolvendo a condenação do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva. Não importa o contexto, a determinação do tribunal é para que esses assuntos não sejam tratados na programação jornalística da emissora. Censura” (Editorial da Jovem Pan)
Houve reação em repúdio à censura de entidades do setor de comunicação, como a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel). “A medida feriu o artigo 5° da Constituição, inciso XIV, que assegura o acesso à informação a todos”, afirmou o jurista Modesto Carvalhosa.
Ditadura do TSE
Qual foi a reação do TSE à onda de indignação popular? No dia seguinte, Alexandre de Moraes pautou uma sessão para ampliar seus poderes. Se tiver maioria, o tribunal poderá censurar qualquer conteúdo sem consultar ninguém — tomar decisões de ofício, no linguajar jurídico.
O parágrafo acima não contém exagero. A Corte dispensou o trabalho do Ministério Público e até mesmo de uma das partes envolvidas num determinado caso, a quem caberia provocá-la.
“É exatamente isso que vamos fazer no Tribunal Superior Eleitoral a partir de agora: não só reduzir o tempo para as plataformas retirarem as notícias fraudulentas do ar, como também, uma vez que a nossa assessoria de desinformação verificar que aquele conteúdo, aquele vídeo foi repetido, com mesmo conteúdo, não haverá necessidade de nova ação, de uma nova representação, de uma nova decisão. Haverá uma extensão e a imediata retirada do conteúdo fraudulento” (Alexandre de Moraes)
O TSE é uma espécie de irmão caçula do STF. Não à toa, só pode ser presidido pelos três representantes do Supremo em rodízio de cadeiras — Moraes, Lewandowski e Cármen Lúcia. Na atual composição, o corregedor é Benedito Gonçalves, do STJ. O quarteto tem maioria. Dos substitutos, Paulo de Tarso Sanseverino muitas vezes também os acompanha. Nos votos divergentes, já apareceram Raul Araújo Filho e a jurista Maria Claudia Bucchianeri.
No caso das inserções de Bolsonaro repassadas para direito de resposta de Lula, por exemplo, Bucchianeri tentou argumentar que o papel do juiz deveria ser minimalista. “O exercício do direito de resposta no horário eleitoral gratuito é medida excepcional”, disse. Foi vencida.
O ministro Dias Toffoli já defendeu a ideia de que os 11 do Supremo atuem como um “Poder Moderador”, algo que constava da Constituição Imperial de 1824, redigida em benefício de Dom Pedro II. O jurista Ives Gandra Martins, um dos mais respeitados do país, avalia do alto de sua experiência: “Às vezes, tenho a sensação de que é uma nova Constituição que estão escrevendo”.
O fato é que centenas de profissionais do Direito têm alertado — alguns publicamente — que Alexandre de Moraes cruzou a linha há muito tempo. É possível que não vá parar depois das eleições. Quem poderia freá-lo? Mais uma vez, com a palavra o ex-ministro Marco Aurélio: “Os homens de bem precisam reagir”.
*REVISTA OESTE
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