Caos urbano. O
asfalto potencializa o calor. Pessoas apressadas e mal-humoradas. O verde é
suplantado pelo cinza. Formigueiro humano. Floresta de concreto. Outdoors
poluem o espaço. Propagandas estridentes e repetitivas agridem a audição.
Cartazes de cartomantes e afins colados nos postes. Ambulantes lutam tenazmente
pelo “pão de cada dia”. Todos estão absorvidos pela labuta diária, logo, não há
reflexões sobre o sentido da existência.
Prédios
imponentes rumam para o céu. Andares e mais andares. Escadas vazias. Elevadores
sobem e descem sem parar. Vizinhos desconhecidos. Terra da indiferença.
Silêncio nos corredores. Cada um vive isolado na sua bolha, ou no seu celular.
Tal rotina faz parte do itinerário existencial de Anderson.
Aparentemente, o
ser humano está condenado a seguir o caminho de Sísifo. Em si, a vida é uma
rotina. Uma vez mais, o sol desponta no horizonte e Anderson se arruma às pressas para não perder o transporte. Já acomodado no Coletivo, a sua
mente é tomada por imagens do trabalho. Nos seus 28 anos de vida, mora sozinho
num prédio de classe média e trabalha numa empresa de peças automotivas no
centro da metrópole.
Às vezes, a vida
solitária aturdia o âmago do jovem, em contrapartida, alegrava-se por usufruir
da plena liberdade. Nos finais de semana, ia na praia e jogava futebol com os
amigos no campo society do bairro. Anderson era altivo e confiante, além de ter
um admirável controle emocional. Ouvia Bach e Chopin e demonstrava muita
curiosidade pela doutrina budista. Ele era sisudo e desconhecia os efeitos
devastadores de uma grande paixão.
A admiração de
Anderson pelo Budismo indicava o seu zelo pelo equilíbrio espiritual, todavia,
não prescindia do bem-estar físico. Certo dia, na academia do prédio, uma jovem
chamou a sua atenção: “aquela garota de
roupa laranja e preta deve ser nova aqui no prédio. Eu nunca a vi. Ela é linda
e tem um corpo escultural. Representa fielmente o meu ideal de ninfeta”. No
outro dia, no mesmo horário, Anderson avistou a garota. Doravante, para ele,
fazer exercício físico na academia adquiriu um sabor especial.
Anderson é muito
observador e intuitivo. Elaborou a seguinte conclusão: “toda vez, no exato momento que encerro as atividades físicas, ela
encerra também. Sigo para o apartamento e sinto os passos dela atrás de mim.
Não nego que meu coração bate mais forte. O apartamento dela localiza-se
defronte ao meu. Pode até ser um exagero de minha parte, mas é uma extrema
coincidência”. Ademais, Anderson tem uma audição apurada e gabava-se aos
amigos: “tenho a audição de lobo”. Por conseguinte, num sábado, por volta da
meia-noite, percebeu umas pegadas aproximando-se da porta do seu apartamento.
Correu para conferir. Do outro lado, a pessoa ficou quieta por uns segundos e
retirou-se.
Diariamente, no
mesmo horário, tais passos não cessaram. Sem perceber, Anderson já estava
dominado por tamanha expectativa. Nos instantes que os ponteiros avizinhavam à meia-noite,
a ansiedade inundava o seu interior. Com as pernas trêmulas, rastejava-se até a
porta. Refletiu: “Meu Deus, antes eu
dormia mais cedo. Ultimamente, só consigo dormir depois da meia-noite. Minha
intuição diz que é ela, porém não tenho provas empíricas. Tentei criar coragem
para cumprimentá-la e abrir a possibilidade de diálogo, mas o medo me venceu.
Quando ouço os passos dela no corredor, sinto calafrios e fico extremamente
nervoso. Sei lá! Parece que há algo no meu inconsciente que me conecta a ela.
Jamais tive um sentimento parecido. O perfume dela no corredor me leva ao
estado de excitação. Ela é muito gostosa! Apesar das evidências, devo ser
prudente. Não sei de onde ela veio. Talvez tenha namorado. Enfim, meu time vai
continuar jogando na defesa”.
Inegavelmente, a
garota era uma habitante mui presente nas memórias de Anderson. No trabalho, no
Coletivo, no futebol, a jovem de roupa laranja e preta suscitava no seu
pensamento. Comentava: “Meu Deus, estou
entorpecido. Eu não consigo parar de pensar nela. Apesar dos pesares, esta
carga sentimental não é tóxica. Meu coração está bem e durmo com tranquilidade,
porém o meu corpo foi incendiado pelo desejo. É uma chama que fica cada vez
mais forte. Ainda bem que a minha mente continua serena”.
A paz espiritual
de Anderson era “arranhada” pela total ausência de informações, condição que o
levou a adotar uma postura estoica. De repente, um verso se revelou: “como diria a música do Ritchie: ‘eu nem sei
qual o seu nome’. Se pelo menos eu
soubesse o nome dela, iria vasculhar as redes sociais em busca de uma
informação concreta”. É inconteste que a ninfeta era um grande enigma para
Anderson. Neste ínterim, ele até teve a chance de envolver-se com outra mulher,
contudo a sua energia estava enveredada unicamente à garota misteriosa. Não
podemos negar que o mistério seduz a psique da humanidade.
Certa vez, num
gesto desprovido de intencionalidade, Anderson deixou a porta entreaberta. À
meia-noite, percebeu o desleixo. De forma inesperada, a porta foi sendo empurrada
com toda delicadeza. Coração aflito. Pernas vacilantes. Olhos arregalados.
Bochechas avermelhadas. Ele se imitou a proferir:
– Você?!
– Sim! Eu mesma.
Posso entrar? Na verdade, já entrei. Por que você não fala comigo?
– Sei lá. Vontade
não faltou.
– Anderson,
venho te observando desde o primeiro dia que te vi na academia.
– Sério?
– Sério!
– Como você sabe
o meu nome?
– Eu dei meu
jeito – risos.
– Qual é o teu
nome?
– Preciso ir.
Depois conversaremos melhor. Não faltará oportunidade, afinal, somos vizinhos.
Amanhã, deixe a porta entreaberta.
– Está bem.
– Beijinhos,
Gato! Até...
Incrédulo,
Anderson trancou a porta e correu para o quarto. Não parava de falar: “foi ela!
Foi ela! Foi ela!”. Posterior ao fato inesperado, escovou os dentes e “pegou no
sono”. Acordou com a energia positiva nas alturas. A alegria e a disposição eram
nítidas na sua face. Enfim, teve o primeiro contato com a musa inspiradora.
Pensou: “de perto, ela é mais bonita. Que
voz doce! O seu perfume exalou pela sala. Ela exibia um vestido laranja bem
colado ao corpo. De imediato, fiquei excitado. Chega de tanto pensamento. Vou
me arrumar logo, pois não posso chegar atrasado na empresa”.
Anderson teve um
dia maravilhoso no trabalho. Chegou em casa cheio de disposição. A felicidade
era explícita, porquanto ele receberia a visita da ninfeta. Perto da meia-noite,
deixou a porta entreaberta. Pontualmente, ela entrou no apartamento. O pobre jovem
ficou estático. Ela usava um vestido branco transparente, “escondendo”
parcialmente a lingerie laranja. Os olhos verdes da ninfeta adentraram as
profundezas do olhar embasbacado de Anderson. Semblante tenso. Garganta seca.
As palavras não atingiam os lábios. Ele não sabia o que fazer. Subsequente ao
silêncio, deu quatro passos para trás e sentou no sofá.
Como uma leoa, a
ninfeta avançou até Anderson e “pulou” nas suas pernas. Ele se sentiu acuado
como uma presa indefesa e não conseguia articular o raciocínio.
Verdadeiramente, Anderson era puro instinto e explodiu em excitação. Boca
feminina no pescoço masculino. Respirações ofegantes. Beijos e mais beijos de
língua. Vestido branco rasgado. Lingerie laranja de renda. Peças íntimas pelo
chão. Corpo nu revelado. Curvas acariciadas. Paladar degusta o clímax. Conexão
lenta, mediana e rápida. Gemidos agudos incidem na audição do lobo. A leoa é
transformada em presa. Um fio de racionalidade ataca a mente sisuda: “eis a química perfeita”. O instinto
extirpa o vestígio invasor. Homem e mulher. Equilíbrio sensitivo. As energias
masculina e feminina se fundem. Corpo uno. Apogeu do prazer. Regozijo. Suor
frio. Silêncio no espaço. Batimentos cardíacos desaceleram...
– Preciso ir.
Até amanhã!
– Até amanhã! –
responde Anderson.
– Mais uma vez,
deixe a porta entreaberta.
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