Em tempos
pandêmicos, a exaltação da ciência virou uma modinha de rede social. A priori, para que o autor deste singelo
artigo não seja execrado ou cancelado pelo Tribunal
das Redes Sociais, ele reconhece a importância da ciência no progresso da
humanidade e no bem-estar social. Inegavelmente, a ciência moldou o século XX e
elevou de forma significativa a expectativa de vida, porém os benefícios
supracitados não devem alçá-la ao status de santidade, haja vista o uso de uma
mentalidade científica no extermínio de judeus nos campos de concentração
nazistas e o lançamento das bombas atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima
e Nagasaki. Reconhecemos o quão a ciência é imprescindível, todavia não a
posicionaremos num panteão sacro.
Desde a Idade
Antiga, perpassando pela Baixa Idade Média e Renascimento até desembocar na
Revolução Científica do Século XVII, o conhecimento científico se mostrou útil
na resolução de problemas do cotidiano. A consolidação do método científico viabilizada
pelos estudos de Galileu Galilei, Isaac Newton e René Descartes e a
proeminência da razão no Iluminismo, estabeleceram as bases para uma maior
projeção da ciência no século XIX. Neste período, o mundo vivia a 2ª fase da
Revolução Industrial, cujas muitas descobertas científicas foram aplicadas no
mundo das fábricas, vide a eletricidade e a química farmacêutica. Inferimos que
o século XIX testemunhara a afirmação da ciência. Não esqueçamos que os
positivistas colocaram o conhecimento científico no topo da hierarquia
epistemológica. O advento da pandemia do Coronavírus nos permite concluir que
estamos a presenciar um neopositivismo? É claro que não! Depois regressaremos a
tal indagação.
Na ciência, nada
acontece da noite para o dia. O conhecimento científico, como qualquer tipo de
conhecimento, requer muitíssimo tempo para ser aprimorado e efetivado.
Insofismavelmente, o tempo é primordial no método científico, o qual, passará
por uma série de testes. Por ora, é deveras oportuno traçar um paralelo com a
filosofia da ciência de Karl Popper. Consoante o pensamento do filósofo
austríaco, a ciência se submete ao crivo da falsificabilidade.
Tal conceito propõe que uma teoria científica deve ser falsificada, isto é,
propensa a inúmeros testes até o conhecimento ser corroborado. Por conseguinte,
a teoria científica é ousada e conjectural, indo além dos dados empíricos
disponíveis, desde que seja refutável. Em Popper, refutar (testar) a ciência
não é um sacrilégio, muito pelo contrário, é essencial no desenvolvimento da
ciência.
Inestimável
Leitor, continuemos na área da filosofia da ciência. O Covid-19 trouxe uma
conjuntura sui generis no século XXI.
A humanidade e os cientistas se reinventaram para enfrentar os efeitos da
pandemia, suscitando novos comportamentos e novas normas à sociedade e à
comunidade científica. Notoriamente, estamos a contemplar um período
revolucionário na história que trará uma mudança de paradigma (conjunto de
regras) na ciência, cujo tempo para a produção de vacinas será menor. Num tempo
científico relativamente curto, alguns laboratórios engendraram imunizantes para
inibir a propagação do vírus. Neste ínterim, faremos um diálogo com a filosofia
da ciência de Thomas Kuhn, a qual, salienta que um novo paradigma é
estabelecido somente em épocas de ciência revolucionária, emergindo em resposta
ao acúmulo de anomalias e dificuldades que não podem ser combatidas pelo paradigma
vigente. Kuhn atesta que, nas fases conturbadas da história, os paradigmas passam por mudanças. O fato é que a ciência não será mais a mesma,
sobretudo aquela ligada à imunologia e à epidemiologia.
Tendo como
horizonte Popper e Kuhn, a ciência deve ser testada de forma ininterrupta, além
de trazer consigo a semente da mudança, fatores que não a tornam infalível.
Todavia, nestes tempos pandêmicos, a ciência se depara com uma aparente
santificação. É de causar estranheza que de uma hora para outra, muitas
pessoas, principalmente os militantes de
Instagram, comportaram-se como defensoras fervorosas da ciência. Há pouco
tempo, a ciência não estava no rol das postagens de tais internautas. Eis a
máxima: é preciso construir uma imagem positiva e heroica nas redes sociais. Por
sinal, tenho a impressão que alguns destes internautas jamais tiveram a
curiosidade de navegar por um site científico ou ler um texto de filosofia da
ciência.
Enfim, as
conversas de botequim e os debates intermináveis nas redes sociais espelham com
frequência o osmótico aforismo: “é a
ciência”. Perguntemos: qual ciência? A indutiva? A dedutiva? A de Oxford? A
de Harvard? Silêncio! Império da ausência de respostas. É fundamental ter
sapiência e não se autoproclamar o baluarte-mor da ciência. Deixemos a ciência
com os cientistas. A ciência não precisa de porta-vozes, defensores e
detratores. Um erro crasso da contemporaneidade foi partidarizar o debate
público acerca do enfrentamento à pandemia. O senso comum não está habilitado
para discutir temáticas de cunho científico. A propósito, o filósofo francês
contemporâneo, Gaston Bachelard, delimitou uma longuíssima distância entre o
conhecimento científico e o senso comum. Exaltemos o progresso da humanidade
atrelado aos avanços da ciência, em contrapartida, não devemos santificá-la,
assentando-a no altar. Oxalá que as questões sacras e divinas continuem a ser
uma exclusividade do mundo das religiões.
(Tosta Neto, 02/02/2021)
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