O
mito é a primeira forma de explicação
da origem de todas as coisas. É notório que as diversas versões mitológicas
apresentam características comuns: narrativa sobrenatural, linguagem metafórica
e fé religiosa. Poderíamos afirmar que o mito é a “certidão de nascimento” de
um povo, logo, antes da filosofia e da ciência, a gênese do Universo era
explanada pela mitologia. Desde o
Paleolítico, os nossos ancestrais lidavam com o mito, por conseguinte, a
experiência mítica é bem mais longa que o pensamento
filosófico-científico. Acredito piamente que o ser humano é mais mítico do que
racional, credo que me persuade a cunhar o seguinte conceito: homo mythicon. O fato é que se quisermos
entender a humanidade com amplitude precisamos considerar seu elo à mitologia.
Neste
singelo artigo, analisaremos os ensinamentos implícitos no mito grego citado no
título. Ícaro, filho do genial arquiteto Dédalo e duma escrava, rebenta de
Perséfone. A avó materna do herói em questão, considerada a deusa das ervas,
flores, frutos e perfumes, era filha de Zeus e Deméter. Perséfone era tão linda
que fora raptada por Hades, deus do mundo subterrâneo. No senso comum, o Mito de Ícaro é associado exclusivamente
ao eterno sonho da humanidade: VOAR. Porém, se investigarmos detidamente o
mito, encontraremos outras reflexões significativas sobre a psique humana. Apesar da linguagem
rebuscada de metáforas e devaneios, a mitologia ajuda a desvelar vícios e
sentimentos entranhados no inconsciente coletivo.
O
pai de Ícaro era reconhecido como o mais competente arquiteto e inventor de
Atenas, todavia ficara incomodado com o talento do seu sobrinho. Inebriado pela
inveja, Dédalo não titubeou e o matou. Horrorizadas, as autoridades atenienses
puniram Dédalo com o exílio na Ilha de Creta. Esta passagem revela um dos
sentimentos mais representativos da humanidade: a inveja. Traçando um paralelo
com a tradição judaico-cristã, o livro de Gênesis
também explora tal sentimento na famosa história de Caim e Abel. A inveja,
logicamente, enverada a outrem, demonstra aquilo que o invejoso não tem ou
desejaria ter, portanto, a existência da humanidade sempre trará consigo o mais
simbólico pecado capital.
É
válido salientar que Minos era o rei de Creta na época do degredo de Dédalo. O
monarca ordenou que o hábil arquiteto construísse um labirinto para o Minotauro
(filho de Pasífae, esposa de Minos, com um touro divino). Insofismavelmente, o
símbolo da traição real deveria ser preso (escondido) no labirinto. Após o
Minotauro ser morto pelo herói Teseu, Ícaro e o pai ficaram aprisionados no labirinto.
Instigado pelo senso de criatividade, Dédalo concluiu que as muralhas seriam
transpostas pela habilidade de voar; com a ajuda do filho, ele construiu asas com
penas de gaivota e cera de abelha. Enfim, saíram do labirinto e,
consequentemente, da Ilha de Creta. Dédalo fizera a seguinte recomendação para
Ícaro: não voe perto do Sol ou próximo ao
mar. O calor solar derreteria a cera e o vapor d’água deixaria as asas pesadas,
condições que impediriam um voo seguro.
Ícaro,
deslumbrado pela sensação de poder e liberdade, voara cada vez mais alto,
aproximando-se perigosamente do sol. Como previu Dédalo, a cera derreteu, as
asas se esfacelaram, Ícaro caiu no Mar Egeu e morreu afogado. O local da queda
do inconsequente herdeiro de Dédalo passou a ser chamado de Mar Icário. Qual é
a mensagem transmitida por esta passagem? É preciso escutar os conselhos dos
mais velhos, fator relegado por Ícaro. Ademais, agir com moderação é
imprescindível, por sinal, na filosofia aristotélica, a vida moderada é o
caminho para conquistar a felicidade. Esta concepção também foi sublinhada no
pensamento de Epicuro, cujo usufruto dos prazeres perpassa pela moderação. A
humanidade necessita atingir o meio-termo, o tão almejado ponto de equilíbrio, outrossim, é preferível evitar extremismos.
Não obstante, Ícaro adotou um polo da extremidade e pagou com a própria vida.
Inegavelmente,
o icônico Mito de Ícaro personifica o
sonho de voar, afã que está mui presente no imaginário popular. Quem nunca
sentiu “aquele frio na barriga” antes e durante a decolagem do avião? No interior,
há aquela euforia perante os rasantes de um helicóptero. O voo simplório de um
drone usurpa muitos olhares curiosos. Essas evidências nos instigam a afirmar
que o ato de voar suscita sedução e encantamento. Creio que nós, reles mortais
e racionais, sentimos inveja dos pássaros. A humanidade deseja a liberdade, por
conseguinte, tal anseio ecoa na capacidade de voar. Prezado Leitor, até aqui,
só fiz críticas veladas ao comportamento de Ícaro; reconheço que devo fazer um mea-culpa e ampliar o campo de visão.
Sem dúvida, Ícaro contemplou uma paisagem deslumbrante, algo que só ele viu e
que ninguém pode descrever. Naqueles instantes anteriores à queda no Egeu,
Ícaro foi livre, feliz e privilegiado, pois testemunhara a beleza estonteante e
excelsa da Terra.
(Tosta Neto, 18/11/2020)
👏👏 Amei!
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