A história humana é
marcada por uma longa trajetória de indivíduos que em ações heroicas entregaram
as suas vidas, muitas vezes literalmente, em prol da proteção de povos, nações
e ideais. As guerras eram o teatro dos horrores em que as suas atuações fizeram-nos
ser notáveis. Homens como Alexandre, Júlio Cesar, Aníbal, Napoleão Bonaparte e
outros escreveram as suas biografias associadas a vitórias épicas em campos de
batalha. No passado os jovens almejavam ser gladiadores e vencerem batalhas
épicas em uma gigantesca arena apinhada de gente. No período medieval tornar-se
um cavalheiro era sinônimo de dignidade, valentia, maturidade e orgulho para
toda a família, era um soldado pronto para guerrear. A honra e os mais sublimes
valores estavam relacionados a componentes belicosos, ao campo de batalha.
Com o passar do tempo
os significados de heroicidade e honradez foram ampliados e personagens
religiosos, navegadores, agitadores políticos ou mesmo artistas passaram a
carregar também essa aura guerreira, de abnegação. Eram tempos em que quase
tudo era perigoso. O risco de perder literalmente a cabeça, ser queimado vivo
ou mesmo ser esquartejado não era raro. Sem falar em prisões arbitrárias,
degredos e outras espécies de punições draconianas.
Provavelmente foi no
século XX em que houve o esgarçamento completo do conceito de heroísmo. Além
dos tradicionais líderes que se destacaram em períodos de guerra, guerrilheiros,
ativistas e militantes passaram a receber homenagens e honras de heróis. Muitas
vezes justas, outras, nem tanto. As guerras metafóricas protagonizadas no campo
esportivo também permitiram com que os atletas também abocanhassem um pedaço
desse prestígio de idolatria dispensado a homens de relevantes feitos.
Conceitos de heroísmo à
parte, é irrefutável que existiam fatos no mundo que exigiam ações corajosas,
de renúncia e altivez de homens e mulheres. Estamos falando do expansionismo
romano, da consolidação de religiões então marginalizadas, das Cruzadas, das
ambições napoleônicas, das batalhas contra o Nazismo, o Fascismo e o Comunismo,
da existência de impérios coloniais, da imposição do apartheid na África do Sul, da ausência de muitos direitos civis, da
prática de guerras étnicas, entre outros males enfrentados pela humanidade aos
longo da sua existência. Tudo era real, legítimo, verdadeiro, perigoso e cruel.
Toda essa longa
trajetória nos traz ao século XXI, período de inquestionáveis avanços. Em que
pese ainda a existência da pobreza em muitas partes do mundo, da persistência de
guerras em muitos territórios do globo, da violência urbana, de problemas
sociais diversos, ainda assim, é irrefutável que nunca a história humana viveu
um período de tanta paz, prosperidade e tecnologia (evidentemente não levando
em conta este momento específico de pandemia). Além dessa bonança, os avanços
da medicina permitem que os seres humanos tenham um tempo médio de vida muito
maior do que jamais tivera e qualidade de vida idem. Diante de tudo isso,
chegamos à grande pergunta realizada por um personagem de nome desconhecido do
escritor russo Fiódor Dostoiévski, no texto “O Paradoxalista”, que consta no
livro “Contos Reunidos” do mesmo autor:
“A
guerra eleva o espírito do povo e a consciência de sua própria dignidade. A
guerra iguala a todos no momento da batalha e reconcilia senhor e escravo na
mais sublime manifestação da dignidade humana: o sacrifício da vida pelo bem
comum, por todos, pela pátria. Será que
o senhor pensa que a massa, mesmo a massa mais ignorante de mujiques e mendigos
não sente necessidade de uma manifestação ativa dos sentimentos elevados? Em
tempos de paz, como a massa pode manifestar sua grandeza de alma e dignidade
humana?”
Bem, o povo
institivamente já sabe como manifestar o seu heroísmo, coragem e dignidade
humana. Nada mais fazendo do que acordar cedo, pegar transportes cheios,
trabalhar durante todo o dia, arriscar-se em cidades violentas, educar os
filhos em situações adversas e, ainda assim, acordar no dia seguinte pronto
para começar tudo novamente como a pedra de Sísifo que desce montanha abaixo e
que deve ser rolada sempre cume acima. A
grande massa não possui tempo a perder em afetações heroicas ou simulações
épicas. A vida em si já é uma espécie de campo de batalha simbólico em que
sobreviver é necessário. Como disse o escritor João Guimarães Rosa: “Viver é muito
perigoso”. Em algumas condições de vida ainda mais.
Isso posto, existe uma
parte da população tupiniquim, e por que não dizer mesmo internacional, de
classe média, alta ou da intelligentsia
que, imbuídos de espírito megalomaníaco e de superioridade, entregam para si a
responsabilidade de mudar o mundo. Abnegados e ansiosos em expressar a sua
coragem e heroicidade, empunhando as suas armas que são as redes sociais, esses “heróis” iniciam a sua cruzada contra todos aqueles que são contrários às suas
visões de mundo realizando linchamento de reputações, criando fake news, realizando boicotes e
promovendo manifestações pela rede. Os seus grandes mestres são os chamados youtubers e os digitais influencers. Se até os BBBs já foram
chamados de heróis, por que eles não seriam?
De posse de uma mente
binária, esses “heróis” transformam alguém em uma espécie de diabo encarnado,
um Thanos que, em sua historinha particular, deve ser combatido com falácias,
histrionismo e vitimismo. Os sentinelas do bom-mocismo e do politicamente
correto não descansam e estão em eterno patrulhamento, sempre dispostos a fazer
justiça, ou seja, cancelar quem pensa diferente ou quem não falar as palavras
que devem ser ditas conforme essa patota. Esse heroísmo está cercado de um
mercado de vaidades em que, aquele que lacra ou mita mais ganha pontos perante
os acionistas da afetação. O bom de tudo isso é sentir-se um sujeito melhor, que
todos os aplaudam e que os seus pares os elogiem e os vejam com bons olhos. Quem
não quer ser benquisto por colegas, amigos e parentes? Sem falar que abre
portas, criam oportunidades e potencializa as redes pessoais.
Nessa matrix mental,
para ser realmente um grande herói, faz-se necessário enxergar perigo em todos
os lugares. Tudo deve ser visto como ameaça à liberdade, tudo é preconceito,
discriminação e faz parte de um plano de homens ruins, verdadeiros vilões que
planejam dominar a sociedade e impor o reino do mal. Se alguém não for capaz de
simular todas essas adversidades, como será capaz de demonstrar todos os seus
sentimentos elevados, a sua grandeza de alma e dignidade humana? Como será
capaz de demonstrar que é um sujeito bom? De que vale ser legal e altruísta se
ninguém sabe ou nota? Como conseguirá ser herói nestes tempos de paz? É
fundamental criar oportunidades de demonstrar os seus bons sentimentos
constantemente para que o mundo saiba que pode contar com ele. Não é possível
ser um herói se a todo instante não houver um inimigo a se enfrentar e isso
seria reconhecer a insignificância da vida medíocre que se vive. Na “sociedade
do espetáculo”, expressão do escritor Mario Vargas Llosa, não ter um Coringa
para enfrentar é estar fora de moda e ser julgado como “alienado”.
E os inimigos
verdadeiros? E os estados nacionais, as instituições e os líderes que realmente
promovem opressões? E as nações homofóbicas, sexistas e genocidas? Nada disso
será observado se os tais “inimigos”, países, instituições ou líderes estiverem
dentro do guarda-chuva ideológico dos heróis das redes sociais. Duplo padrão
costuma ser a regra. Em uma mente binária, um lado carrega todas as virtudes, e
o outro, todos os defeitos. Sem falar que certas defesas não dão likes e podem desagradar alguns dos seus
colegas da Liga da Justiça.
Embora essas ações
“heroicas” de redes sociais sirvam como forma de demonstração de uma espécie de
empatia por certas causas e grupos, no entanto, gestos exagerados minam parte
da credibilidade daquilo que se almeja dizer ou defender. Ao criar paranoias e
histerismos por causas justas, legítimas, depõe-se contra essas próprias
causas, pois, além de desgastarem os temas indevidamente, criam a cultura de que
tudo que se fala é exagero, hiperbólico, histriônico ou, na expressão corrente
das redes sociais, mimimi. Muitos dos assuntos debatidos nas redes e pelo
politicamente correto são problemas reais, importantes e que refletem as
mazelas da nossa sociedade, todavia, devem ser tratados com equilíbrio,
inteligência e de maneira enfática e firme quando necessário. É fundamental
refletir sobre as causas profundas desses problemas e não se ater a sensos
comuns, superficialidades e respostas prontas. A história humana está cheia de
exemplos de boas causas que serviram como justificativas para a violência, a
perseguição, a falta de liberdade e oportunismo.
Talvez seja demais
pedir serenidade e honestidade intelectual ao debater temas sensíveis à
convivência humana em um ambiente tão tóxico e barulhento quanto as redes
sociais. Se tal pedido parece ser um tanto inviável para o padrão médio dos usuários
de internet, poderia ser almejado pelo menos pela chamada “classe mais
esclarecida” do país. Mas enquanto não se encontra a medida correta de discutir
questões pertinentes ao nosso país e ao mundo, os “heróis” do marketing pessoal
continuarão em evidência. Serão os dom quixotes lutando contra os moinhos de
vento.
(Geisson
Peixoto Araújo, 08/10/2020)
Belo post meu caro. Muitas pessoas se tornam especialistas em diversos assuntos, e sem responsabilidade alguma de dizer a verdade ou transmitir legitimidade. O interesse é apenas vencer suas épicas batalhas virtuais, blindados por uma terra sei lei.
ResponderExcluirMoysés Oliveira
Prezado Moysés, grato pelo comentário! O autor foi muito feliz nesta produção textual. De fato as redes sociais se transformaram no ambiente de "heróis" e "salvadores da pátria".
ExcluirEu realmente gostei desta postagem. A verdade é que cada vez mais as pessoas são especialistas em redes sociais e vivem para elas, na minha humilde opinião acho que passam o tempo a fingir nas redes para que os outros possam ver, quando essa não é a realidade em que vivem, mas sim ei, outra coisa é que eles usam as redes sociais, por exemplo, para fazer campanhas de marketing gastronomico, para que bares e restaurantes possam oferecer melhor seus produtos e se dar a conhecer com mais facilidade. Obrigado por compartilhar.
ResponderExcluir