Uma representação enviada ao Grupo Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco) do Ministério Público (MP), ao qual o CORREIO teve acesso, contém graves acusações contra a delegada Maria Selma Pereira Lima, que até o dia 4 deste mês era diretora do Departamento de Crimes Contra o Patrimônio (DCCP) da Polícia Civil da Bahia. O documento, que cita outros agentes públicos, acusa Maria Selma de liderar uma organização criminosa envolvendo traficantes e assaltantes.
Assinada em agosto deste ano pela delegada Carla Santos Ramos, a denúncia afirma que Maria Selma mantém sob a sua liderança “uma rede de indivíduos ligados à polícia e ao mundo do crime, destinados à pratica constante e reiterada de delitos, notadamente contra o patrimônio e tráfico de drogas, e que usa a estrutura do Estado para garantir a impunidade dos executores e autores intelectuais”.
De novembro de 2015 até outubro de 2019, Carla Ramos exerceu o cargo de delegada titular da Delegacia de Furtos e Roubos (DRFR), na Baixa do Fiscal, subordinado ao mesmo DCCP que Maria Selma chefiava desde julho do ano passado. O detalhe é que, nesse intervalo, em outubro, Carla, que agora elaborou a denúncia contra Maria Selma, chegou a ser presa juntamente com outros três policiais por prática de tortura dentro da delegacia.
No último dia 4, Maria Selma foi exonerada do cargo junto com outros 36 membros da Polícia Civil em uma dança das cadeiras promovida pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA).
Em um vídeo publicado em suas redes sociais, ela explicou que contraiu covid-19 e, por isso, pediu licença prêmio de seis meses, o que justificaria a exoneração. Enquanto isso, no documento enviado ao MP, Carla enumera uma série de delitos, liberações de prisão indevidas, omissões e associações ao crime atribuídos à sua superiora.
O primeiro deles teria ocorrido no dia 6 de setembro do ano passado, quando uma quadrilha foi presa na DRFR por roubar, com uso de arma de fogo, uma carga de telefones celulares da empresa Magazine Luiza avaliada em R$ 100 mil.
Além da prisão de quatro criminosos e a recuperação da carga, foram apreendidos um revólver e dois veículos, um deles uma Fiorino branca de placa adulterada. O veículo foi roubado em julho do ano passado. Citando diversos investigadores e agentes de polícia, além dos números dos boletins de ocorrência, a denúncia enviada ao MP afirma que o auto de prisão em flagrante não foi comunicado no prazo legal e os “flagranteados foram liberados em audiência de custódia no dia 09/09/2019”.
Trecho do relatório enviado ao MP (Foto: Reprodução) |
A delegada Carla Ramos diz que no dia 17 de setembro chegou a receber um telefonema de Maria Selma requisitando o envio para a sede do departamento da Fiorino branca que havia sido roubada. “Segundo a mesma, havia um advogado em sua sala para receber o referido veículo”, afirma Carla na denúncia. Mas ela diz ter comunicado que o carro possuía restrição de roubo e foi encaminhado para a Delegacia de Furtos e Roubos de Veículo (DRFRV).
Carla relata que, no dia da soltura, um dos quatro detidos, Tiago de Castro Cerqueira, disse a ela que não ficaria preso porque “quem tem amigos, tem tudo”. Outro preso em flagrante, Jocimar Aquino dos Santos, teria dito que tem “parente” na polícia e este seria responsável pela soltura de todos. “Tiago fora condenado por roubo em setembro de 2018, progredido de regime em maio de 2019, tendo sido sua pena convertida em prisão domiciliar”, apurou a delegada Carla.
Apresentando cópias digitais do sistema interno da Polícia Civil, Carla mostra que Tiago de Castro Cerqueira foi apresentado a Maria Selma ainda em 2018, quando ela era titular da 16ª Delegacia (Pituba). “Local em que a mesma supostamente cooptava meliantes para integrar a organização criminosa”. A denúncia afirma que Maria Selma usava como intermediários das cooptações um falso policial civil.
Carla Ramos: autora da denúncia (Foto: Arquivo CORREIO) |
Entre os investigadores que supostamente fazem parte da rede de conexões de Maria Selma, dois foram citados na denúncia. Segundo a delegada Carla Santos Ramos, os agentes Dênis e Lacerda propositadamente não comunicaram a prisão em flagrante que deu origem ao Inquérito Policial 080/2019. Em uma diligência, Maria Selma e seus agentes também teriam protegido um traficante identificado como Anderson Santos Carvalho, preso após denúncia anônima de que ele conduzia um veículo com forte odor de droga.
Acontece que Anderson foi solto antes de ser solicitado o apoio dos cães farejadores da Coordenação de Operações Especiais (COE) da Polícia Civil. Quando o canil da COE chegou, um dos cães sinalizou que a droga estaria no painel do veículo. Na oportunidade, foram encontrados sete tabletes de pasta base de cocaína. Mas, diz a denúncia, “Anderson Santos Carvalho foi liberado sem ser interrogado e, apesar de ter sido achado sete tabletes de pasta base de cocaína no veículo em que o mesmo conduzia, sequer Inquérito Policial foi instaurado para apurar o fato”.
Trecho do relatório (Foto: Reprodução) |
Segundo o relatório, Maria Selma teria solicitado sua licença prêmio justamente porque descobriu que estava sendo investigada pela corregedoria. Mesmo assim, estaria atuando para liberar criminosos presos.
Em alguns trechos do relatório, Carla Ramos admite “imprimir opinião pessoal” sobre os fatos. Em um dos trechos, ela dispara contra a Polícia Civil e a própria Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), quando diz acreditar que “haja um componente político que impeça ação das Casas Correcionais no caso em tela e esteja desta forma facilitando o cometimento de mais crimes sob a anuência da Policia Civil e da Secretaria de Segurança Pública”.
O que dizem os envolvidos
O CORREIO entrou em contato com Maria Selma na manhã desta terça-feira através de aplicativo de mensagem. “Como pode uma delegada [Carla Santos Ramos] que foi presa e está sendo processada na justiça falar de policiais honestos?”, questionou Maria Selma, antes de informar que enviaria uma nota sobre as acusações. Nessa nota, os advogados dela, Sérgio Habib e Thales Habib, afirmam que a cliente refuta “com veemência as acusações que circulam contra ela pelas redes sociais, comprometendo-se a comprovar a sua inocência no curso do Inquérito Policial perante a Corregedoria de Polícia Civil e eventual Ação Penal no âmbito da Justiça Estadual, caso venha a ser instaurado”.
A nota acrescenta que as acusações são “inteiramente inverídicas e não se sustentam em provas, mas em meras suposições dentro desse discurso teórico que as acusações foram formuladas”. A nota diz que a delegada “confia na justiça” e que ao final do processo “reconhecerá a sua inocência”.
Já a delegada Carla Santos Ramos, que assina o documento, não atendeu às nossas ligações. Em outubro do ano passado, ela foi acusada de prática de tortura juntamente com outros três policiais civis da DRFR. Na oportunidade, chegou a ser presa e exonerada. No seu depoimento, a vítima, funcionária de uma casa lotérica no bairro de Dom Avelar, alegou que os agentes aplicaram-lhe chutes, socos, tapas e cacetadas na cabeça, além de ter um dos dedos do pé quebrado na tentativa de fazê-la confessar onde estaria o dinheiro roubado da lotérica e indicasse o nome de outros envolvidos no delito.
Tudo teria tido a anuência de Carla Ramos, então titular da unidade. Fontes ligadas à polícia afirmam que Carla atualmente é delegada plantonista, mas não conseguimos confirmar em qual unidade ela está lotada.
Por meio de nota, o MP confirmou que “a investigação está na fase de análise da documentação apresentada pela representante e das diligências iniciais para verificar a procedência das informações. Após essa investigação preliminar, todos os envolvidos serão chamados para depor. O procedimento corre sob sigilo, não sendo possível o fornecimento de outras informações neste momento, de modo a não atrapalhar a investigação e assegurar o êxito na adoção das medidas que se façam necessárias”.
Polícia
Procurada, a Polícia Civil enviou nota ao CORREIO informando que tomou conhecimento da denúncia de forma extraoficial, quando as apurações foram iniciadas. E confirma que há um procedimento relacionado a Maria Selma na corregedoria. “A Polícia Civil esclarece que a Corregedoria da Instituição (Correpol) tomou conhecimento sobre um relatório com denúncias, na sexta-feira (4), e iniciou as apurações. Também informa que um procedimento relacionado à diretora do Departamento se encontra em andamento na Correpol”.
A nota diz ainda que a exoneração de Maria Selma, no início desse mês, foi um ato meramente administrativo. “A exoneração da diretora do DCCP e outros servidores são atos administrativos dentro de um processo natural de aperfeiçoamento do trabalho, que ocorrem periodicamente”. No vídeo que divulgou na Internet antes das acusações vazarem, Maria Selma disse que voltará a ser delegada após descansar.
“Ninguém pode exercer um cargo que não esteja desempenhando as funções. Meu delegado chefe me concedeu uma licença até janeiro. Estou descansando um pouquinho. Essa missão de diretora foi muito cansativa”.
Maria Selma foi candidata pelo PDT a deputada estadual em 2018 e teve 7 mil votos em Salvador. Ela decidiu não ser candidata a vereadora este ano. “Continuo delegada e vou voltar. Gosto muito do que faço”, disse, antes das denúncias enviadas ao MP.
*CORREIO 24H
0 comments: