O
ambiente legislativo é pródigo no uso de termos que representam categorias
políticas, utilizadas como formas de separar os homens públicos em segmentos
representativos da sociedade. Sempre foi assim e sempre será. Conservadores,
socialistas, anarquistas, democratas, liberais, republicanos, parlamentaristas
e tantos outros adjetivos saíram desse espaço mais restritivo do debate público
(Câmara e Senado) ou de locais mais especializados (universidades, artigos de
jornais e revistas) e invadiram territórios ainda mais democráticos como as
praças públicas, jantares, festas de família e, principalmente, as redes
sociais. Foi um avanço de fato, pois reflete a expansão do interesse da
população pelas questões políticas do país e pela tentativa de compreensão dos
perfis dos agentes públicos que debatem os temas nacionais.
O
lado deletério dessa banalização de termos é a sua imprecisão conceitual e a
sua aplicação como xingamentos eufemísticos, ou seja, como ofensas menos
agressivas, mais cordatas, mais elegantes. É uma agressão verbal com palavras
amenas, mais sutis. Em resumo: o desejo do locutor era mandar o interlocutor à
m****, mandá-lo tomar banho ou outra coisa, ofender a sua mãe ou o seu pai, mas
isso soaria “bárbaro” demais e denunciaria a sua falta de etiqueta pública, sem
falar que chamar alguém de comunista, fascista, neoliberal ou nazista é mais
chique! Poucos foram os estudantes universitários das áreas humanas que não
carregaram consigo o sonho de um dia ofenderem alguém por esses nomes. Hoje
todos se encontram plenamente saciados.
Não
são apenas os homens e mulheres “comuns” que vêm usando descriteriosamente esses
termos dos quais muito só ouviram falar “por cima” ou pela Wikipédia, mas também os políticos das diversas matizes,
jornalistas, comentaristas e até ministros do Supremo! O grande gramático
Evanildo Bechara aponta que “o problema daqui do Brasil é que os palavrões, de
tanto uso, vão perdendo o aspecto de afrontamento” e ainda que “o meu medo como
professor é que, amanhã, o indivíduo para xingar o outro, vai chamar de
‘deputado’, ‘senador’, aí sim passa a ser palavrão”¹. Talvez se o eminente
membro da Academia Brasileira de Letras tivesse dito tais palavras neste
corrente ano quando a coisa exacerbou de vez e não em 2016, muito provavelmente
teria chegado à conclusão de que essas ofensas intelectualizadas são as
diversas categorias políticas usadas no debate público. São os novos palavrões
das redes sociais.
O
debate sobre a banalização de categorias políticas e os seus usos como
xingamentos remete evidentemente a fatores semânticos, ou seja, sobre o sentido
que dou a determinadas palavras, aos seus significados ou a preconceitos sobre
elas. Quando chamo alguém, por exemplo, de “esquerdista” ou “direitista”, essas
expressões estão carregadas de sentidos positivos ou negativos que dependem da
visão de mundo de quem enuncia e de quem recebe o enunciado, assim sendo, pode
ter um sentido negativo ou positivo conforme o entendimento existencial de quem
escuta e de quem fala. Obviamente se alguém embute em um adversário determinada
categoria política, obviamente não enxerga nela grandes qualidades.
O
debate acerca da banalização de categorias políticas remete de alguma maneira também
à “Lei de Godwin”, ou seja, uma teoria criada pelo advogado e membro sênior de
um instituto de pesquisa política libertário de Washington, que a utiliza para
expressar a banalização analógica de qualquer fato político ao nazismo. Dito de
outra forma, quando alguém associa pessoas públicas ou não, às ações delas ou às
medidas tomadas por elas ao nazismo. Em uma discussão seria como apelar para o
nazismo como efeito retórico, exagerado, normalmente irreal.
Se
no debate público brasileiro a Lei de Godwin está sendo infringida ou não
depende muito do senso de proporções de cada um, mas se ela fosse estendida às
outras categorias políticas além do nazismo, certamente faltariam “cadeias”
para tantas ilegalidades. Em um ambiente cada vez mais polarizado, o exagero
retórico é a arma mais frequente nas acirradas discussões sobre os importantes
temas nacionais. Na esgrima verbal, é o dedo no olho, é a trapaça que se usa
contra o adversário para levar vantagem na peleja discursiva. Só o debate real,
maduro e profundo poderá diminuir essas imprecisões que as redes sociais
potencializam.
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Breve
dicionário político do senso (in)comum das redes sociais
Antifas – Para os esquerdistas, bravos
guerreiros representantes do povo em defesa da democracia brasileira; para os
direitistas, vândalos e black-blocs que só querem brigas e quebrar tudo.
Comunistas – Para os direitistas em geral,
qualquer um que seja de esquerda, para os bolsonaristas em particular, qualquer
pessoa que critique o governo.
Conservadores – O povo evangélico, que acha
imoral transar antes do casamento, fumar um baseado e ser gay. Para piorar tudo
vota em Bolsonaro.
Direitistas – Para os esquerdistas, sinônimo
de bolsonaristas.
Esquerdistas – Para os direitistas, sinônimo de
petistas.
Fascistas – Qualquer pessoa que seja
conservadora, favorável ao porte de armas e critique a imprensa. Defender
pautas liberais não passa de disfarce para enganar trouxas.
Globalismo – A Organização Mundial da Saúde,
as Nações Unidas, a China e os cubanos em associação com Thanos para dominar o
mundo. Nada é aleatório, tudo tem um propósito.
Nazismo – Alguma coisa a ver com
preconceito, mentiras repetidas muitas vezes, ditadura e um tal de Hitler. É o
nome mais agressivo para ofender alguém e exagerar nas coisas quando se fala em
política, por isso sempre está na moda.
Neoliberais – São os defensores da economia de
mercado, mas podem chamá-los de capitalistas malvadões que desejam roubar todo
o dinheiro do mundo e matar os pobres de fome.
Olavismo – Um monte de loucos
conspiracionistas formados por um velho tabagista e de boca suja. É a Liga da
Justiça contra os globalistas e comunistas.
(Geisson
Peixoto, 23/06/2020)
Referências
1.https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1780783-palavroes-e-xingamentos-se
acumulam-em-disputas-entre-politicos.shtml
2.https://super.abril.com.br/ideias/quem-e-mike-godwin-e-o-que-e-a-lei-de-godwin/
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