
“Não há uma só noite,
nem um só dia em que não se ouçam, misturados aos vagidos dos recém-nascidos,
os gritos de dor em torno dos esquifes”. (Lucrécio)
Em
tempos de coronavírus evidenciamos na mídia os preocupantes números de mortes
produzidas por esse misterioso ser microscópico. Dados nacionais e
internacionais de óbitos são constantemente atualizados e projeções pessimistas
lançam possibilidades de perdas abundantes de vidas humanas. Reportagens fazem
paralelos entre a atual situação mundial com outras tragédias de saúde pública
pretéritas como a Peste Negra. A morte se projeta como tema inescapável, muito
mais do que normalmente é.
Os
momentos mais dramáticos e épicos da história dos homens se mostram quando a presença
da morte se torna mais constante, massiva e temida, talvez por isso a
humanidade tenha produzido ao longo da sua história um mundo simbólico cuja
finalidade era tentar esquecê-la ou amenizá-la. As religiões, a filosofia, as
artes e o entretenimento, entre outras funções, nada mais fazem do que isso.
Mas nem sempre é possível se libertar completamente da necessidade de sua
reflexão mais profunda.
Entre
os grandes pensadores que trataram do tema da morte, certamente um dos mais
fascinantes é o francês Michel de Montaigne em sua monumental obra Ensaios, uma das mais formidáveis
produções que o gênio humano foi capaz de realizar. Em um dos seus ensaios de
título “De como filosofar é aprender a morrer”, o escritor nos alerta sobre a
inutilidade da preocupação com esse drama pessoal que em algum momento se
avizinhará. Diz o mesmo que:
“Se a nossa morte é
súbita e violenta, não temos tempo de receá-la; se não é, na medida em que a
enfermidade nos domina, diminui naturalmente o nosso apego à vida. Custa-me
muito mais aceitar a ideia de morrer quando gozo saúde do que quando estou de
febre. Quando não me sinto bem, as alegrias da vida me parecem menos valiosas,
tanto mais quanto não estou em condições de usufruí-las, a morte se me afigura
menos terrível. Disso concluo que quanto mais me desprender da vida e me
aproximar da morte, tanto mais facilmente me conformarei com a passagem de uma
para outra.”
Reflexão
que possui relações com a alcançada pelo filósofo Epicuro em um passado remoto,
mais especificamente entre os anos 341 a 270 a. C., tempo em que viveu. Em seu
texto “Carta sobre a Felicidade”, disse
a seu discípulo Meneceu na oportunidade:
“O mais terrível de
todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando
estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte
está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para
os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que
estes não estão mais aqui.”
A
“existência” da morte pode nos parecer aterradora e de fato é, sobretudo quando
ela atinge as pessoas que mais amamos. O mais abominável da sua natureza é o
seu excesso de certeza, tanto no que se refere ao seu alcance universal a todos
os seres vivos quanto ao fato de ser aquilo que existe de mais definitivo,
determinado, inegociável. Em que pese essas características, o seu fenômeno
paradoxalmente valoriza a vida, pois sem a morte estaríamos talvez fadados a
viver um eterno futuro, pensando que teríamos um tempo infinito para alcançarmos
o que almejamos, de amar a quem admiramos e de lutar pelo que acreditamos. Não
saberíamos valorizar o presente, pois construiríamos em nós a sensação de que
ele estaria infinitamente à nossa disposição, e se existe uma das certezas que
a experiência humana nos traz é aquela que diz que os homens tendem a
desvalorizar tudo aquilo que lhes são abundantes. Sabemos que temos um limite
existencial e precisamos aproveitá-lo convenientemente, sob pena de torná-lo mais
curto do que realmente foi porque o tempo, além de cronológico, são os das
sensações, das experiências e das emoções. Não por acaso Montaigne nos diz que:
“A vida em si não é um
bem nem um mal, torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis. [...] Qualquer
que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na
duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai
sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de
anos, terdes vivido bastante.”
Não
se está aqui a aprovar a aceitação da morte, muito pelo contrário. Ela deve ser
refletida com equilíbrio e sensatez em todo o seu significado para que
possamos, mais do que nunca, valorizar a sua antítese: a vida. Que essa chance
única e intransferível não seja retirada precocemente seja por vírus, seja de
fome, seja de violência ou por quaisquer meios não naturais. Dos números de
óbitos que gritam na mídia neste tempo de crise tiremos a sabedoria de cuidar
dos que ficam e de valorizar a existência que temos. Como diria Montaigne:
“Prolonguemos os trabalhos da existência quanto pudermos, e que a morte nos
encontre a plantar as nossas couves, mas indiferentes à sua chegada e mais
ainda ante as nossas hortas inacabadas”.
(Geisson
Peixoto, 16/04/2020)
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