O fascismo está se tornando quase tão influente e banalizado no mundo atual como há cem anos, quando Benito Mussolini formulou a doutrina da ditadura cristã que destruiria o passado e suas instituições políticas. “O renascimento do fascismo acontece na Europa e nas Américas”, afirma o escritor napolitano Antonio Scurati, de 50 anos, professor de Literatura Contemporânea da Universidade de Milão. “Talvez eu faça parte da última geração que se formou no antifascismo.”
A um só tempo fascinado e horrorizado pela assombração constante do fantasma de Mussolini em seu país, Scurati lançou em 2018 o romance de não ficção “M., o filho do século”, lançamento da editora Intrínseca. O livro foi laureado com o Prêmio Strega em 2019, o mais importante da literatura italiana.
É o primeiro volume de uma trilogia que aborda a trajetória do Duce e deve ser concluída em dois anos. Mas o livro não comporta uma narrativa em que a invenção ofusca a história. “É um romance documental”, diz Scurati. “Para escrevê-lo, adotei um critério muito rigoroso. Nenhuma personagem, evento, discurso ou frase narrada no livro é inventada livremente.”
O primeiro volume se concentra nos anos de 1914 a 1924, das escaramuças ideológicas iniciais à subida ao poder. No início, Mussolini atua como militante e diretor do jornal de esquerda milanês “Avanti!” quando é expulso do Partido Socialista porque se opõe à recusa dos correligionários de apoiar a entrada da Itália na Grande Guerra ao lado da França e Grã-Bretanha contra a Alemanha. No conflito, luta como sargento e é condecorado por heroísmo. Renegado pelos socialistas, passa a atacá-los e a pregar a vitória da legião do “homem novo” sobre as hordas que, segundo ele, marcham em direção ao abismo do passado. Apóstolo da violência bélica, ele renega os dogmas marxistas, como a luta de classes e o internacionalismo. Preconiza um estado forte, inspirado tanto no Futurismo como no Império Romano, ambos capazes de aniquilar as instituições e os inimigos, cada um a seu modo. Funda em 1921 o Partido Nacional Fascista, com sua simbologia mística, que inclui a saudação romana, suas milícias de jovens uniformizados — os “camicie nere”, camisas negras — e, sobretudo, sua brutalidade. Assim, em 1922, após liderar a marcha sobre Roma, é nomeado primeiro-ministro pelo rei Vittorio Emanuele. Surge “Il Duce”, o líder da “italinità”, dono de retórica e gestualidade hiperbólicas, que hipnotiza a massa. Os próximos dois volumes contarão o que todo mundo sabe: o primeiro-ministro se une a um discípulo, o nazista Adolf Hitler, forma o Eixo com Alemanha e Japão, e sucumbe. Parte de sua milícia, equipe e seguidores não sofre perseguição. Ao contrário do que acontece na Alemanha, as instituições permanecem coalhadas de fascistas convictos. Assim, o ideário nacionalista, xenófobo e religioso de Mussolini exerce poder e fascínio até agora.
Fiéis e detratores
Diante da permanência fascista, Scurati buscou o tom equidistante. Em vez de tomar partido, como o fazem muitos ficcionistas, compôs a história com base em documentos, discursos, textos e reportagens de época. Parte da crítica condenou a isenção, pois o texto agrada ao detrator, mas também surte o efeito contrário e pode servir o fiel.
Mussolini é uma força do passado, perigosa e operante. Suas ideias ainda tangem multidões mundo afora, onde são consideradas naturais e benéficas. Para neutralizar a crença totalitária, Scurati sugere uma receita. “É urgente refundar o antifascismo”, diz. Nessa direção, sua trilogia pode até ajudar a dissuadir os incautos, mas não basta para inverter os rumos da política.
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