Jorginho, jovem de origem humilde,
saiu muito cedo de casa. Morava na Rua do
Ouvidor e trabalhava na oficina sediada na Rua de Matacavalos. À noite, tentava concluir o Ensino Médio no
Colégio Estadual Machado de Assis. Vivia triste, pois sua vida era um marasmo
de domingo a domingo. Às vezes, diluía a melancolia cotidiana no futebol. Ele
amava o esporte mais popular da Terra. Na infância, fizera parte das categorias
de base do América.
– Como foi o baba ontem?
– Foi ótimo. Faltou você – responde Gabriel.
– Não pude ir. Surgiu um imprevisto.
– Apareça na próxima oportunidade.
– Irei sim. Preciso distrair. Estou um pouco pra baixo nos últimos dias
– Jorginho com voz embargada.
– O que aconteceu Meu Amigo?
– Não sei explicar.
– Entendo-te. Eis a ausência do sentido da vida. De vez em quando, somos
acometidos pelo vazio da existência.
– Não entendi nada. Mas, tudo bem – Jorginho solta um breve sorriso.
– Eu gosto de Filosofia. Ah! Como você está no colégio?
– De mal a pior. Serei reprovado novamente.
– De novo?! Você não tem jeito.
– É verdade.
Jorginho já estava acostumado a morar sozinho. A vida solitária era
amenizada pelas boas amizades que cultivava. Sobrevivia com um salário-mínimo.
Quando surgia um ensejo, fazia “uns bicos” no domingo para complementar a
renda. Jorginho pagava um valor de aluguel pesado para um assalariado, logo,
não podia curtir nos finais de semana. Certo dia, suscitou um movimento na Rua do Ouvidor. Novos vizinhos estavam a
chegar. De imediato, o prestimoso Jorginho se colocou à disposição para
auxiliar no carregamento dos móveis.
– Gabriel, tenho uma novidade.
– Qual?
– Novos vizinhos chegaram lá na rua. Um casal: parece que são médicos. E
a filha: aparenta ter 16 anos. São ricos. Chegaram lá com uma Dodge Ram preta.
– A garota é bonita?
– Demais. Nossa senhora! Uma loirinha top.
Jorginho ia levando a vida: trabalhando muito, ganhando pouco e tirando
notas baixas na escola. Subsequente ao diálogo existencial com Gabriel, assumiu
uma postura estoica, aceitando “a vida como ela é.” Certo dia, sem nada para
fazer, ouviu a janela da vizinhança ranger; movido pela curiosidade, foi
conferir pelo buraco da janela de seu quarto. A loirinha estava de baby doll
olhando-se de forma narcísica no espelho. Jorginho foi sugado por tal cena...
“Nossa senhora! Ela é muito gata. Um corpinho de violão. Quem me
dera...”
Jorginho não parou mais de pensar na loirinha. Ficou mais atento à rotina
da vizinhança. Qualquer barulho, corria para o buraco da janela. Num dia
qualquer, ouviu uma conversa corriqueira de família e discerniu o nome da
loira: Claudinha. Doravante, ao acordar, qual nome surgia na mente de Jorginho?
“Claudinha... Claudinha... Claudinha...”
Jorginho entristeceu. Há tempos não tinha novidade de Claudinha.
Literalmente, a vida dele estava a andar em círculo; nem o bendito futebol
conseguia amenizar as agruras da existência. Mas, ele tinha um colírio, uma luz
no fim do túnel, um fio de esperança: Claudinha.
O sol estava escondido. Nuvens cinzentas no firmamento. Chuva fina e
ininterrupta. Esses fatores climáticos deixaram Jorginho mais melancólico.
Contudo, a imprevisibilidade sempre vem. A janela da vizinha rangeu. Jorginho
correu até o buraco...
“Naquele dia de baby doll, hoje de lingerie preta. Nossa senhora! Que
corpinho maravilhoso. Só queria passar as mãos naquelas curvas. E ela sempre
fica rebolando para o espelho...”
Jorginho ria de felicidade. O sol voltou a brilhar. O tom celestial regressou.
O frio foi dissipado pela natureza. Na Rua
do Ouvidor, todo mundo percebeu a alegria de Jorginho. Aparentemente, o
“Astro-rei” estava conspirando a favor do pobre jovem. Sem delongas, a janela
voltou a ranger...
“Minha nossa! Hoje ela está só de calcinha. Que mulher! Vou enlouquecer.
E os seios? Pequenos e pontiagudos...”
Jorginho não conseguia tirar Claudinha da cabeça. A todo momento, ele a
via projetada no espelho de sua mente. Imaginava mil e uma peripécias sexuais.
Claudinha virou o sol de Jorginho. A janela...
“Linda! Que corpo perfeito! Claudinha já me enlouqueceu. Ela é tudo para
mim...”
Claudinha virou uma obsessão para Jorginho. Todos os atos de Jorginho
eram precedidos e sucedidos por pensamentos enveredados a Claudinha. A
janela...
– Venha. Eu sei que você está aí.
“Não acredito. Ela está me chamando. Estou nervoso. Meu coração está
acelerado...”
– Venha. Não tenha medo de mim.
“Eu não vou. Estou sem graça. Afinal, ela descobriu que eu ficava
observando-a pelo buraco da janela...”
Jorginho ficou incrédulo e impotente. Não sabia o que fazer. Nem cogitou
a possibilidade de conversar com Gabriel. Ele fez um acordo consigo mesmo que
jamais contaria para outrem sobre Claudinha. Era um segredo de Estado guardado
debaixo de 70 chaves. Enfim, Claudinha foi transmutada em deusa para Jorginho.
A janela...
– Venha. Não vou te morder.
“Não sei o que faço. Minhas pernas estão tremendo...”
– Venha. Você não gostou de mim?
“Não vou. Não vou...”
– Venha. Eu sou feia?
“Não vou. Você não é feia...”
– Venha. Você não sabe o que está perdendo.
O âmago de Jorginho foi impulsionado por uma força arrebatadora. Apesar
do desmedido nervosismo, uma coragem inexplicável o instigou: abriu a janela e
pulou no quarto de Claudinha. Mais uma vez, a imprevisibilidade emergiu.
Jorginho ficou ajoelhado nos pés de Claudinha. Não teve mais força. A energia
vital o deixara. O pobre jovem teve um ataque cardíaco e morreu nos pés de
Claudinha. A janela da vizinha foi a derradeira alegria do pobre e infeliz
Jorginho. Pois é! A vida é trágica...
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