O carro derrapava assustadoramente
na neve de uma estrada deserta, no sudoeste da Polônia. Huskies me olhavam com
curiosidade por trás de uma cerca. Eu esperava que o caminho me levasse até o
complexo subterrâneo de Osówka, quase na fronteira com a República Tcheca. Mas
estava perdido.
A estrada estreita seguia ladeira
abaixo, as rodas derrapando no gelo, como se o carro estivesse me avisando que
não haveria jeito de retornar. Então segui em frente, e acabei encontrando por
sorte.
É que há pouca sinalização para
quem quer visitar Osówka, aos pés das montanhas Sowie, o cartão-postal da
região. Os enigmas em torno do complexo subterrâneo vêm desde a 2a Guerra,
porque ele é parte de algo bem maior, o chamado Projeto Riese (“gigantesco” em alemão). Trata-se de uma série de
grandes bunkers interconectados que, juntos, formariam uma verdadeira cidade
debaixo da terra, com 35 km2 de área (quase dez vezes a do bairro de
Copacabana, no Rio), e capacidade para 20 mil pessoas.
O lugar abrigaria fábricas de
bombas, que poderiam ser construídas lá embaixo a salvo dos bombardeios
inimigos. E também receberia o equipamento necessário para a construção da
bomba atômica nazista – aquela que, para a sorte do planeta, Hitler não
conseguiu tirar do papel.
A construção do complexo, com seus
salões e túneis de interconexão, teve início em 1943, na Baixa Silésia, uma
região da Polônia que, antes da Guerra e durante, fazia parte da Alemanha. O
encarregado do projeto foi o arquiteto Albert Speer, amigo pessoal de Hitler e
ministro da produção de armamentos do Terceiro Reich. As obras começaram
simultaneamente em diferentes pontos das montanhas Sowie.
Há sete pontos subterrâneos
conhecidos, e o complexo de Osówka é um dos maiores. O salão principal tem 8
metros de altura e está completamente revestido de cimento, mas ainda é
amparado pelos suportes de madeira originais usados em sua construção,
apodrecendo pela ação do tempo e da umidade no interior da caverna.
Por ali, ficam em exibição
uniformes, máscaras de gás, armas, pás, picaretas… Tudo abandonado às pressas
enquanto o exército soviético se aproximava, no começo de 1945. Ao perceber que
a guerra estava perdida, aliás, Hitler emitiu o “decreto Nero”, ordenando a
queima de documentos do Reich. Nisso, os documentos que detalhavam os planos
para o complexo subterrâneo foram completamente destruídos. O que se sabe hoje
é fruto do trabalho minucioso de historiadores. E o fato é que ainda há muito
mistério envolvendo o Projeto Riese.
Escravos
A construção do complexo ficou a
cargo de prisioneiros judeus. Eles vinham de Gross-Rosen, um campo de
concentração próximo. A composição das rochas das montanhas Sowie, bem dura,
permitia salões e túneis amplos. Por outro lado, dificultava o trabalho de
escavação. A expectativa de vida de um trabalhador de Osówka girava em torno de
quatro meses. Estima-se que 13 mil judeus tenham trabalhado nas obras, e que 5
mil tenham morrido.
Em outra parte do complexo, dá para
ver os carrinhos que rodavam sobre trilhos, usados para tirar a terra e a pedra
que iam sendo escavadas. Dá para imaginar as dificuldades que esses
trabalhadores enfrentavam. O teto às vezes é baixo, comprovando a necessidade
do uso de capacete. Após quase duas horas no claustrofóbico escuro úmido das
cavernas, é inevitável sentir alívio ao avistar a luz do dia, na saída do
complexo subterrâneo. Saímos por um túnel diferente do que entramos, um pouco
mais isolado na densa floresta da região, escorregando no gelo da trilha que
levaria de volta ao estacionamento de Osówka.
O passeio termina com a impressão
de que ainda há muito a se descobrir sobre o
Projeto Riese. E há mesmo. Baseado em correspondências de Albert Speer,
historiadores estimam que apenas 10% dos túneis tenham sido descobertos até
agora. Perfurar a terra em busca de túneis ocultos sai caro – mais do que os
orçamentos das universidades interessadas em pesquisar podem dar conta. Por
essas, grande parte do trabalho de pesquisa feito hoje é obra de expedições
privadas de caça ao tesouro. São grupos que passam meses estudando mapas
antigos e a topologia do terreno da Silésia, procurando pistas que possam
indicar mais locais subterrâneos, como saídas de dutos de ar.
A busca deles é por artefatos
valiosos que caíram nas mãos dos nazistas, como a “Sala de Âmbar”. Trata-se de
um conjunto de paredes de âmbar e ouro, feitas no século 18, que os nazistas
roubaram de um palácio próximo a São Petersburgo, e que nunca mais foi visto. A
obra de arte tem o valor estimado em US$ 250 milhões.
Outro tesouro que caçam por ali é
uma espécie de Eldorado moderno: o lendário “trem do ouro nazista”. Seria um
trem de 150 metros recheado de pedras preciosas, tapeçarias, obras de arte e,
claro, ouro, roubado das vítimas do Holocausto. Não há evidência alguma de que
tal trem exista. Menos ainda de que esteja oculto em túneis jamais descobertos.
Mesmo assim, não faltam expedições em busca dele. A última aconteceu em 2016 e
contou até com o apoio do governo polonês. E deu em água.
Bunker de todos os bunkers
Outro pedaço do Projeto Riese é um complexo de túneis
construídos bem debaixo do castelo Książ, um palácio esplendoroso situado a 30
km da entrada de Osówka. Dois andares de galerias foram escavados debaixo do
castelo, a mais de 60 metros de profundidade. Durante a guerra, o castelo Książ
estava sendo reformado para se tornar a residência de Adolf Hitler. O quarto
que viria a ser do líder austríaco teria, inclusive, um elevador com acesso
direto aos túneis. Isso reforça outra teoria sobre o propósito do Projeto Riese: o de que ele pudesse
abrigar todo o comando nazista se fosse preciso. Seria o bunker de todos os
bunkers. Pelo ritmo da construção, acredita-se que, se a guerra durasse mais
dois anos, o Projeto Riese estaria
funcionando a todo vapor, mas provavelmente as estruturas básicas poderiam
começar a ser usadas bem antes disso. Em seu livro de memórias, o arquiteto
Albert Speer diz que a preocupação do alto comando nazista com a própria
sobrevivência chegava a “níveis insanos”, o que levava à criação de cada vez
mais bunkers.
É o caso do de Obersalzberg, outro
complexo subterrâneo nazista aberto para visitação, só que perto da fronteira
com a Áustria. Ele também nunca foi usado, mas fica perto de uma residência que
Hitler ocupou de fato, pelo menos por algumas temporadas: a bela “Casa de
Kehlstein” (mais conhecida pelo apelido que as tropas aliadas deram para o
imóvel: “Ninho da Água”). “Ninho” porque está fincada no topo do monte
Khelstein. Hitler, porém, não gostava muito do lugar, por ter medo de altura.
De qualquer forma, já havia lá um bunker para ele, dado o “insano” senso de
autopreservação. Diante de tudo isso, chega a ser irônico que Hitler tenha
morrido num bunker modesto, no centro de Berlim.
O bunker do Führer não está aberto
para visitação. Ele foi destruído pelos soviéticos e hoje, acima dele, fica o
estacionamento de um prédio de apartamentos levantado na época da Alemanha
Oriental. Há apenas uma placa nos arredores dizendo que Hitler morreu ali. Nada
do glamour misterioso do Projeto Riese, ou mesmo de Obersalzberg. Talvez seja
melhor lembrarmos do nazismo justamente assim. Não como uma história que
instiga a imaginação, mas como o que ele realmente foi: uma época fúnebre da
história da humanidade.
ONDE FICA
O complexo de bunkers do Projeto Riese está encravado na Baixa
Silésia, uma região da Polônia que, antes e durante a 2a Guerra, fazia parte da
Alemanha.
(Fonte: Superinteressante)
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