Que
o ser humano surgiu na África há no mínimo 200 mil anos, ninguém duvida. Mas os
detalhes dessa história sempre foram nebulosos. A hipótese mais aceita, e que
costuma figurar nos livros escolares, é a de que o berço da civilização é o
atual território da Etiópia. É ali que nosso ancestral comum com os chimpanzés
teria se isolado geograficamente — e então sido presenteado pela evolução com
um cérebro enorme, postura ereta e os demais traços anatômicos e
comportamentais que nos tornam únicos.
Pena
que essa está longe de ser a versão definitiva. De tempos em tempos surge uma
nova descoberta para virar a explicação mainstream
de ponta-cabeça. A última bomba veio em junho do ano passado: foram
encontrados quatro esqueletos humanos de anatomia razoavelmente moderna na
região de Marrakesh, no Marrocos. Eles viveram a 5,5 mil quilômetros de
distância do suposto epicentro das migrações humanas, e 100 mil anos antes da
data que, por décadas, foi adotada como marco inicial do Homo sapiens. Mesmo assim, você não veria diferença quase nenhuma
se pegasse um ônibus com eles.
“Isso
nos dá uma noção completamente diferente da evolução da nossa espécie”, disse
na época o arqueólogo Jean-Jacques Hublin, responsável pela pesquisa. “Ela
surgiu muito antes do esperado e, pelo jeito, já estava presente em toda a
África há 300 mil anos. Se houve um Jardim do Éden, então ele foi do tamanho do
continente.”
Essa
citação não está aqui à toa: Hublin praticamente profetizou um artigo
científico recente, publicado no último dia 11. Um grupo com mais de 20
arqueólogos, antropólogos e geneticistas influentes fez uma revisão detalhada
das evidências científicas disponíveis sobre a origem do ser humano. E concluiu
que elas de fato apontam para uma origem múltipla — em que várias populações
isoladas, nos quatro cantos da África, desenvolveram ferramentas e anatomias
ligeiramente diferentes ao longo da pré-história.
“Os
fósseis de Homo sapiens mais antigos
não demonstram uma progressão linear simples na direção da morfologia humana
contemporânea”, afirma o novo estudo. “Na verdade, eles exibem grande variedade
morfológica e distribuição geográfica ampla (…) Essas informações são
consistentes com a visão de que a nossa espécie se originou e diversificou em
populações fortemente subdivididas, provavelmente espalhadas pela África.”
Eleanor
Scerri, arqueóloga da Universidade de Oxford que montou a equipe
multidisciplinar e liderou a análise, afirma que é preciso superar as disputas
egocêntricas entre especialistas em evolução humana — que sempre tentam puxar a
sardinha para a importância de suas próprias descobertas — e criar uma linha do
tempo mais isenta, que integre todos os pontos de vista disponíveis de forma
coerente.
Em
outras palavras: se foi encontrado um crânio assim na África do Sul o outro
crânio assado, ligeiramente diferente, no Marrocos, não há porque brigar para
ver qual dos dois é o “mais correto”. Ambos são peças válidas do mesmo
quebra-cabeça, e se essas peças não encaixam tão bem, é sinal de que a
realidade é mais complicada do que queremos acreditar.
A
ideia de Scerri não é fornecer respostas. E sim estimular um jeito diferente de
fazer as perguntas. Por exemplo: os estudos genéticos com populações africanas
se beneficiariam se passassem a buscar sinais de transferência de genes entre
populações diferentes em vez de considerar apenas a transmissão em árvores
muito bem delimitadas, que se ramificam de um ponto de origem comum. Afinal, se
havia vários agrupamentos evoluindo em paralelo, eles sem dúvida se encontraram
esporadicamente e fabricaram bebês no processo — da mesma maneira que o Homo sapiens cruzou com os Neandertais quando alcançou a Europa.
Bom,
ninguém disse que escrever nossa própria história seria fácil. A ciência existe
para isso mesmo: questionar a si própria. E a parte mais difícil sem dúvida é
admitir que é hora de olhar as coisas de outro ponto de vista.
(Fonte:
BBC)
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