Marco
Antonio Villa n’O Globo
O Brasil vive uma crise
de identidade cultural. Ao longo do século XX, foi recorrente a busca
incessante de interpretações do nosso país. A grande migração do Nordeste para
o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade transformaram radicalmente
o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas profundas contradições
sociais e políticas fomentaram a necessidade de compreender o momento
histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam conta das
transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho ufanismo do
Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno necessitava da
crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do presente.
Na literatura, no
cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade
cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer
diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios
políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo
ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou
se transformando em referência para outras culturas.
Atualmente, o panorama
é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais
profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país
fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas
artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.
Nesta conjuntura, é
possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário
cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro
símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A
música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da
letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a
idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de
transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da
moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato,
como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o
Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo
este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No
réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o
público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos
trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”
A decadência cultural
do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial.
Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer
sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é
indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser
hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960,
hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de
coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a
cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna
juventude, agem como Peter Pans tupiniquins.
Como chegamos a este
ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar
este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu.
Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca
existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas
formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas
servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das
prefeituras e governos estaduais.
O Brasil acabou se
transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental,
especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações
culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados
Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao
invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato.
Não é possível atribuir
ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar
muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite
econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual.
Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o
máximo matricular seus filhos em escola bilíngue — somente duplicam a
ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge
delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer
é fazer compras.
O Brasil não tem nenhum
museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos,
pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país
que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que
temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão
desatualizados. E os grandes teatros?
Este triste panorama é
produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo.
Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores
Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/
Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an
an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons
tempos quando Anita era a Garibaldi.
(Fonte: Blog do Villa)
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