Bonzinho
era o Superman do seu avô. Hoje, o Azulão é capaz de matar para proteger a
humanidade (como no filme O Homem de Aço, de 2013). Já na série Demolidor
(Netflix), do herói chifrudo da Marvel, cabeças rolam e membros são decepados a
golpes de espada. Tudo isso parece muito normal no mundo ultraviolento e
radicalizado de hoje. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que
super-heróis simbolizavam justiça e inspiravam pureza. Há 30 anos, isso foi
enterrado de vez.
Há
30 anos, HQs como O Cavaleiro das Trevas, Watchmen e Maus eram lançadas,
encerrando a chamada Era de Bronze dos Quadrinhos (de 1970 a 1985) e iniciando
a Era Moderna - ou, mais adequadamente, Era das Trevas, na qual estamos até
hoje.
Na
Era Moderna, os super-heróis ganharam licença para matar, pirar, entrar em
crises de identidade, de consciência, trocar de lado, brincar de deus, ser
juiz, júri, carrasco. Em Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, um Batman
envelhecido retorna à ação para salvar Gotham City mais uma vez. Escolhe uma
menina adolescente para ser a nova Robin, mata o Coringa e dá uma surra no
Superman - que, aliás, foi retratado como um moleque de recados do presidente.
Em
Watchmen, Alan Moore e Dave Gibbons imaginaram um mundo onde o surgimento de um
único superser com poderes semidivinos desequilibra de vez o tabuleiro do poder
mundial, em uma obra cheia de questionamentos filosóficos e políticos
complexos.
Em
Maus, o artista Art Spiegelman conta a história real dos seus pais,
sobreviventes de Auschwitz, com riqueza de detalhes e a carga psicológica
pesada que o tema exige. Não à toa, estas (e outras HQs da época) foram
múltiplas vezes premiadas e homenageadas ao longo dos anos, fazendo de 1986
"o ano que mudou os quadrinhos".
Claro
que as coisas não são tão estanques assim. 1986 cristalizou um movimento que
havia se iniciado no fim dos anos 1960, quando a contracultura invadiu as HQs a
partir dos comix marginais de Robert Crumb e Gilbert Shelton.
Os
reflexos no mainstream foram rápidos, com o Homem-Aranha tendo de lidar com seu
amigo Harry viajando de LSD e o Arqueiro Verde flagrando seu ex-parceiro mirim
Ricardito com uma seringa no braço - para ficar só nos exemplos mais famosos.
"O
primeiro grande fator que leva a isso acredito ser o enfraquecimento do Comics
Code, o código de ética que desde a década de 1950 vinha limitando a
criatividade dos artistas, que tinham que criar histórias mais puras,
digamos", afirma Lucas Pimenta, editor e dono da loja Katapow!.
Já
o quadrinista baiano Flavio Luiz (Aú, O Cabra) lembra de outros
precursores. "Will Eisner sempre
apostou na capacidade da HQ em contar histórias profundas, sem perder sua missão
de entreter. Joe Kubert (Sgt. Rock) e Schulz (Peanuts) também fizeram
isso".
Depois
de 1986, a paisagem das HQs - e da cultura pop em geral - mudou de vez, com
temáticas adultas ganhando proeminência. As consequências são sentidas até
hoje. Nos quadrinhos mainstream, o sucesso de HQs como Monstro do Pântano (de
Alan Moore) e Sandman (1989), de Neil Gaiman, levou à criação do selo Vertigo,
da DC, até hoje a maior referência em HQs adultas nos EUA.
Os
jovens que leram estas HQs cresceram e foram fazer suas próprias HQs, filmes,
série de TV e games. Resultados? Preacher, Y: O Último Homem, Supremos. Game of
Thrones, Grand Theft Auto e por aí vai.
Contrários
Claro
quem nem tudo são flores (secas) no jardim cinzento da Era Moderna. Flávio Luiz é um grande crítico dessa
estética. "Sempre acreditei que a função primeira dos quadrinhos era o
entretenimento. A coisa ficar pesada e densa, para mim, afastou muito leitores
como eu", afirma.
Ele
lembra que, depois, até precursores desta linguagem, como Alan Moore, buscaram
suavizar a abordagem em busca da leveza perdida: "Alan Moore, no seu Tom
Strong, mostra um caminho que devia ser mais apreciado. Não levar tão à sério
facilita a relação autor / leitor", diz Flávio.
"Mike
Allred, no novo Surfista Prateado, também acerta nessa postura. Em determinado
momento, num diálogo que tenta levar a coisa para essa complexidade nociva
atual, o Surfista responde sempre: 'poder cósmico'. E é suficiente. Pelo menos,
deveria ser", acredita.
Enfim,
o que surgiu como inovação, foi banalizado pela indústria, com inúmeras
imitações e diluições. A lição que fica é que não importa se você é
"sombrio" ou "colorido": o importante é ser criativo.
"Acredito
mesmo é que os quadrinhos precisam ser vistos e valorizados como forma de arte,
até mesmo pela indústria que os produz, e que os autores tenham mais liberdade.
Quando isso acontecer, os EUA terão um mercado criativo forte, como o poderoso
quadrinho franco-belga", conclui Lucas.
(Fonte:
A Tarde)
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