Certo
dia, lendo um artigo sobre política, o autor denominou atos de barbárie física
e verbal como atos tipicamente medievais. De imediato, fiquei embasbacado com
tamanho preconceito histórico e tive o insight
de escrever esta crônica. É notório que a Idade Média é vista como a “Idade das
Trevas”, uma noite de mil anos que não houvera produção intelectual e o
conhecimento ficara estagnado. Virou lugar-comum associar o período medieval à
escuridão e ao atraso. Esta concepção equivocada começou a ser construída pelos
renascentistas e foi ratificada pelos iluministas. Na visão iluminista, a fé
religiosa exacerbada e o teocentrismo chafurdaram a Idade Média; a
historiografia tradicional a situa entre os séculos V e XV.
No mundo medievo, a filosofia passou por
uma era iluminada, graças à preservação e estudo das obras platônicas e aristotélicas.
Santo Agostinho, Pensador Gigante da história da filosofia (caro leitor, não
nego para ti, sou fã incondicional do bispo de Hipona), efetuou um magnífico
elo entre o cristianismo e a filosofia platônica. O nominalismo de Pedro
Abelardo, outro filósofo medieval, é considerado um marco fundamental nos
estudos sobre a filosofia da linguagem. Tomás de Aquino, “Doutor” da Igreja
Católica e ícone da Escolástica, teve
a genialidade e a audácia de traçar um paralelo entre o pensamento cristão e o
sistema filosófico aristotélico. Vale salientar, que René Descartes –
considerado pai da Filosofia Moderna –, bebeu, embriagou-se no pensamento
escolástico-tomista.
Talvez eu precise de uma noite de mil anos
para enumerar o riquíssimo legado medieval. A universidade, símbolo-mor da
constituição do conhecimento, surgiu lá na Idade Média, por volta dos séculos
XII e XIII; o humanismo renascentista amadureceu neste contexto universitário
medieval. Sobre a Enciclopédia, consagrada herança do Iluminismo, já havia exemplares medievais. Na literatura, o Trovadorismo e suas doces cantigas de
amor, amigo, escárnio e maldizer. Na música, os misteriosos e sorumbáticos
cantos gregorianos. Na pintura, Giotto, um dos precursores da introdução do
perspectivismo na aquarela das telas. Na ciência, a alquimia, que deu origem a
moderna química.
Consoante o parágrafo acima, percebe-se a
grande injustiça com a era medieval. Também, por falta de conhecimento
histórico consistente, o senso comum e o imaginário popular veem a Idade Média
como a época das fogueiras inquisitoriais. A história atesta que o Tribunal do
Santo Ofício teve mais vigor na Idade Moderna, fato impulsionado na conjuntura
da Reforma Protestante e da Contrarreforma, logo, a Inquisição é um
fenômeno histórico predominantemente moderno. Ademais, o mundo urbano, característica
eminente do Renascimento, tem suas
raízes na Idade Média. Tal urbanização está atrelada ao revigoramento do
comércio na Baixa Idade Média, cuja economia passou por um processo de
transformação com o colapso do feudalismo.
A tradição histórica erra ao salientar um
rompimento brusco entre a Idade Média e a Idade Moderna. Simplesmente, os
renascentistas se empanturraram na produção intelectual do mundo medieval. É
preferível evitar o conceito de ruptura
drástica nas abordagens historiográficas e considerar a ótica de
continuidade e permanência, portanto, o Renascimento
não surgiu de forma repentina sem delinear um diálogo com a anterioridade.
O passado e o presente estiveram, estão e sempre estarão interligados. Não é
exequível construir o presente sem o alicerce do passado. A Idade Média não foi
apenas a “Idade das Trevas”, dos santos e do teocentrismo, outrossim, a Idade
dos homens e do antropocentrismo, enfim, a Idade das Luzes.
Tosta Neto, 02/03/2016
Acredito que esse preconceito em relação à Idade Média seja ainda fruto de uma visão historiográfica antiga, em que muitos professores de história, ainda hoje, repetem. Isso acontece até com a literatura, pois muitos acham que um autor escreveria com as caaracterísticas de uma determinada escola e, como em um passo de mágica da fada madrinha de uma data qualquer, o escritor passa a escrever com outra. O realista Machado de Assis escreveu obras românticas, alguns modernistas gostavam do parnasiano Olavo Bilac, entre outras interferências de um contexto histórico em outro. Na história tudo é processo, nada é gratuito ou acaso. As datas servem apenas para demarcar uma espécie de fronteira, para resssaltar algum evento que passa a ser, definitivamente, um divisor de águas. É interessante também para fins didáticos. A Idade Média até hoje vive no nosso imaginário com os seus príncipes e princesas, na referência de diversos escritores (Umberto Eco dizia amar esse período), os valores de cortesia e admiração às mulheres (embora em crise), o conceito de cavaleiro andante que salvará a tudo e a todos e que colocará tudo em seu devido lugar. Em muitas coisas, a Idade Média faz falta...
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