O
Supremo no Brasil talvez seja o único que toma as decisões em transmissões ao
vivo. Dizem que é uma jabuticaba pois só dá no Brasil. Pelo menos é uma
jabuticaba do bem, pois tem o gosto doce e esquisito da transparência.
O fato de os ministros estarem tanto tempo na tela,
convivendo no mesmo espaço luminoso com centenas de outros personagens, talvez
os jogue nessa teia de familiaridade com os espectadores. Lewandoswki, por
exemplo, é um atacante do Bayer que costuma jogar nos dias de sessão no
Supremo. Você muda o canal e Lewandoswki é um tremendo zagueirão, em defesa das
teses do governo.
Nem sempre tenho tempo para ver tudo, mesmo nos
momentos wagnerianos. Confesso que, às vezes, me parecem prolixos, redundantes,
mas o que fazer, movem-se com uma linguagem especifica.
Talvez seja um problema pessoal. Desde garoto,
escrevendo para jornal, a luta diária com as palavras exige clareza e uma certa
rapidez. Quase nunca se consegue a satisfação. Mas há um anjo sempre lembrando:
olhe para a frente, no próximo, quem sabe.
A barreira retórica é uma das dificuldades para se
entender essa Corte. Não afirmo ainda que seja bolivariana. A corte bolivariana
não surpreende nunca. Suas decisões são sempre a favor do governo.
A corte brasileira apresentou algumas surpresas no
papel dos atores embora o resultado tenha sido favorável ao governo. Uma delas
foi o voto de Edson Fachin e Dias Toffoli. Ambos são considerados simpáticos ao
PT. Celso de Melo, Cármen Lúcia, Marco Aurélio atropelar o parlamento.
Numa das férias, quando as tinha, tentei me aproximar
do mundo das leis apoiando-me num volume das conferências de John Rawls. As
férias acabaram antes do livro, mas por coincidência, marquei no texto lido,
uma questão interessante. Por que certas questões e direitos estão fora do
alcance das maiorias legislativas ordinárias?
Não creio que o impeachment precisasse regular
detalhes do impeachment. Aconteceu o que é muito comum no país do futebol:
apitaram perigo de gol. De novo.
Uma corte bolivariana é uma afirmação do cinismo, pois
já determinou, antecipadamente, quem vai ganhar.
Está lá no livro de John Rawls:
— O que os cínicos dizem sobre princípios políticos
éticos e ideais não pode ser correto. Se fosse, a linguagem e vocabulário que
se referem e apelam a esses princípios, há muito tempo teriam deixado de
existir. O povo não é estúpido a ponto de não perceber quando essas normas são
usadas por líderes e grupos de uma forma manipulativa.
De John Rawls a Lewandoswki, o zagueiro, é mais do que
mudar de canal. Um me faz sentir cidadão, outro me faz sentir enganado.
Com 16 anos de Parlamento, como posso aceitar, o
argumento de que os deputados devam votar numa chapa única para comissão do
impeachment? Como me convencer, se até para a escolha da presidência da Câmara
há chapa avulsa? Em que comissão da câmara não se permite isto? De repente,
aparece um grupo de capa preta e subtrai um direito minoritário, ao vivo e em
cores?
Felizmente, tive calma e energia para mergulhar no
trabalho e sonhar com uma corte que me surpreenda, não com a variação dos
atores, mas com os vereditos finais.
Visitei a Chapada Diamantina em chamas. Perdemos 55
mil hectares de uma das mais ricas e diversas regiões do Brasil. No meio da
fumaça e do calor infernal, descobri as brigadas voluntárias da pequena cidade
de Lençóis, gente que deixou tudo para apagar o fogo. Essas brigadas são
importantes. Elas se antecipam ao governo, combatendo os primeiros focos. E
pressionam para que a máquina oficial entre em combate.
As chamas na Chapada Diamantina lembram-me o filme de
Terence Malick; “Cinzas no paraíso” (“Days of Heaven”). As imagens de mestre
Nestor Almendros o crepitar das chamas parecem uma cerimônia fúnebre, a
cremação da mata e dos bichos.
Seca prolongada e as chuvas intensas no Sul: quando a
Nasa previu que El Niño seria intenso, era necessário um projeto nacional para
reduzir seus danos. Não houve. Com a eclosão do vírus da Zika, outra gigantesca
força tarefa é necessária. Também não saiu.
Alguns voluntários, na Chapada combatem sem botas e de
camiseta. Às vezes, as fagulhas os faz contorcer como se estivessem recebendo
um santo.
Talvez sejam orixás que os mantêm vivos no combate ao
fogo. De qualquer forma, é a força estranha que nos impulsiona na planície. Que
ela venha no Ano Novo e o faça acontecer: 2015 resiste em acabar.
Em certas partes do ano, costumo estar de boa vontade
com o mundo e as pessoas. É o que se chama de espírito natalino, embora nem
sempre aconteça no Natal. Quando há desencontro de época e estado de espírito,
o Natal é um pouco aborrecido. Este ano, meu espírito natalino coincidiu com o
Natal. Isto amenizou o desencanto que tive com o Supremo, ao decidir pelo
Parlamento quais são as regras do impeachment.
(Fernando Gabeira / Fonte: O Globo)
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