sábado, 19 de setembro de 2015

“Senhor Deus dos desgraçados! [...], onde estás que não respondes!”

Registro da criança síria, Aylan Kurdi, morta numa praia turca provocou reações intensas e influenciou o debate político
  O leitor apressado, diante da tragicidade da imagem e do apelo dramático do título da crônica, talvez julgue que o autor coloque a culpa em Deus pela crise migratória. O título traz trechos de “O navio negreiro” e “Vozes da África”, clássicos poemas do maior poeta brasileiro, o Grande Castro Alves. Apesar da distância temporal do contexto histórico dos poemas e da crise migratória do século XXI, há uma consonância entre estas duas funestas páginas da história humana. Estimado leitor, desde já, confirmo para ti a minha seguinte convicção: a inculpabilidade de Deus na crise migratória e de todas as tragédias que assolaram e assolam a humanidade.
  Discorramos sobre a temática em questão: a crise migratória do século XXI, demonstrando o calvário de refugiados do Oriente Médio e da África, que tentam chegar a Europa através do Mediterrâneo, na esperança inesgotável por dias melhores. Recentemente, o mundo ficou chocado com a foto do menino sírio de apenas três anos de idade, Aylan Kurdi, que morreu afogado, cujo corpo foi encontrado e fotografado em 2 de setembro na praia de Bodrum (Turquia). Arrisco dizer que esta foto é a imagem mais impactante do século XXI. Quando a vi, senti uma angústia profunda rasgar impiedosamente o meu interior. A foto de Aylan Kurdi se tornou um símbolo da crise migratória, forçando os europeus a refletirem um pouco mais a determinada questão.
    O discurso mundial sobre a imigração ganhou outra ótica depois da divulgação da foto de Aylan Kurdi. A Alemanha, país mais rico da Europa, mostrou-se susceptível a debater sobre a possibilidade de abrigar imigrantes sírios. A Inglaterra ainda se mostra resistente à flexibilização de sua política migratória. Os países ricos não podem se eximir desta responsabilidade. Todos nós vivemos em único lugar, o Planeta Terra, logo, não podemos ficar indiferentes à desgraça dos outros. Vamos inverter hipoteticamente a situação: se os europeus estivessem na mesma condição dos refugiados do Oriente Médio e da África? É mister que todas as nações se unam e busquem soluções que pelo menos amenizem a dor destes miseráveis.
    O pequenino e pobre Aylan Kurdi morreu em um naufrágio no Mediterrâneo. Este fato que provocou consternação no mundo também revela a ação de traficantes que viabilizam a perigosa travessia em embarcações precárias e lotadas, prática infame que rende milhões de dólares por ano para alguns. Recordo-me dos traficantes que tanto lucraram com o comércio negreiro. Às vezes, tenho a leve sensação que na história o enredo continua, embora mudam-se os personagens. Diariamente, os telejornais mostram flagrantes de refugiados nestas embarcações. Por causa da complexidade da conjuntura contemporânea – avanço do Estado Islâmico no Oriente Médio, sobretudo na Síria, guerras civis e a proliferação da miséria – estudiosos defendem a tese que esta é a pior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial.
    A morte de Aylan Kurdi personifica a morte de centenas de imigrantes que perdem suas vidas no Mediterrâneo. Tantos Aylans Kurdi morrem vitimados por guerras, fome, intolerância religiosa, doenças e naufrágios. Até quando a humanidade ficará cega e surda perante a morte de milhares de Aylans Kurdi em todo o mundo? Que a morte de Aylan Kurdi seja um ícone da luta em prol da causa dos desgraçados imigrantes. Que as autoridades do mundo escutem o choro dos desgraçados imigrantes. Só para registrar, o pequenino e pobre Aylan Kurdi foi enterrado no dia 4 de setembro, na sua cidade natal, Kobane, norte da Síria, cidade sitiada pelo grupo genocida Estado Islâmico. Encerro o texto com as palavras de Abdullah Kurdi, pai de Aylan, que também perdeu a esposa e outro filho: “como pai que perdeu os filhos, não tenho nada o que esperar deste mundo. A única coisa que gostaria é que o drama e os sofrimentos na Síria acabassem, e que a paz retornasse”.


Tosta Neto, 19/09/2015


Sobre o Autor:
Tosta Neto Tosta Neto é Escritor e Historiador, Colunista e Colaborador do Outro Olhar.

Um comentário:

  1. Essa imagem, principalmente para mim, que tenho um filho na mesma faixa etária, causa-me verdadeiro terror! O mais desalentador é imaginar quantos mais passarão por situações semelhantes, porém, longe dos holofotes da grande mídia internacional. O autor foi extremamente perspicaz no sentido da necessidade de um movimento global, sobretudo, por parte das nações mais poderosas e ricas do mundo (notadamente as da Europa e os Estados Unidos), visando solucionar os problemas que afligem esses povos jogados à própria sorte. É necessário uma atitude muito mais altruísta por parte dos grandes líderes mundiais, pois, enquanto continuarem existindo tragédias como essas, o mundo continuará sendo um lugar em que o ódio, o radicalismo, a fome e a ignorância, infelizmente, pertencerá a muitos em prol de poucos. Salutar para esse contexto, as palavras do antigo poeta latino Ovídio, citado por Rousseau no seu clássico "A origem da desigualdade entre os homens": "Vamos unir-nos para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence. Vamos instituir regras de justiça e de paz, às quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos." Essa lição é antiga, mas, nunca, plenamente aprendida pela humanidade...

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